Crime foi praticado no último governo da ditadura militar

O Ministério Público Federal (MPF) no Rio de Janeiro, com novos dados e depoimentos, denunciou seis pessoas pelo atentado a bomba ocorrido em 30 de abril de 1981 no Riocentro, local de eventos na zona oeste do Rio de Janeiro. Naquela noite, 20 mil pessoas, segundo se estima, assistiam a um show relativo ao 1º de Maio, Dia do Trabalho. Era período do último general-presidente, João Figueiredo, durante o qual se esboçava um projeto de abertura política combatido pela chamada linha-dura. O Riocentro se insere nesse contexto.

Cinco dos denunciados são militares, sendo três generais – caso de Newton Cruz, que na época era chefe da agência central do Serviço Nacional de Informações (SNI) em Brasília, e para quem a pena, somada, pode chegar a 67 anos. "A ação dos militares pretendia causar pânico e terror na plateia do show e na população, atribuindo falsamente o atentado a uma organização da militância contra o regime de exceção, e, assim, justificar um novo endurecimento da ditadura", diz o MPF.

Na denúncia, com 101 páginas, divulgada na segunda-feira (17), o Ministério Público afirma que todos os denunciados "desviaram-se da legalidade, conspurcaram o bom nome das instituições a que vinculados, envergonhando seus colegas e a nação brasileira por afastarem-se dos princípios e valores que devem reger a conduta de um agente do Estado".

Outro denunciado é o coronel reformado Wilson Machado ("Dr. Marcos"), parceiro do sargento Guilherme Pereira do Rosário ("Agente Wagner") na operação. Rosário, do Departamento de Operações de Informações (DOI) do 1º Exército, carregava uma bomba que explodiu em seu colo, causando morte instantânea. O então capitão Machado era dono do Puma onde os militares carregavam o artefato. Para ele, denunciado por homicídio doloso tentado (duplamente qualificado por motivo torpe e uso de explosivo), associação criminosa armada e transporte de explosivo, a pena pode chegar a 66 anos e seis meses de reclusão. No caso de Newton Cruz, a denúncia inclui ainda favorecimento pessoal, por esconder a identidade de dois envolvidos no atentado.

"A primeira bomba estava destinada ao palco onde os artistas se apresentavam, mas explodiu no colo de um dos criminosos no momento em que se aproximavam do complexo, de carro, para posicionar a bomba. Existem provas da existência de pelo menos duas outras bombas que foram vistas no interior do veículo por várias testemunhas e que foram retiradas do carro juntamente com outros objetos para ocultar a verdade e para garantir a impunidade dos criminosos. Uma quarta bomba foi efetivamente lançada na subestação de eletricidade (casa de força) do complexo do Riocentro com o objetivo de cortar a energia e apagar as luzes", afirma o MPF.

Quem também prestou depoimento foi a viúva do sargento Rosário, Suely. Ela relatou que militares do DOI foram até a sua casa, "ameaçaram-na diante de seus filhos e atearam fogo em documentos relacionados ao trabalho de seu marido", além de suprimir parte das folhas de alterações (espécie de currículo) do sargento.

Durante dois anos, o Ministério Público produziu 38 volumes de documentos e 36 horas de gravações, em 42 depoimentos. "O caso do atentado do Riocentro é emblemático porque revela a torpeza e os objetivos deste grupo de radicais, integrado por membros das Forças Armadas, que estava disposto a detonar artefatos explosivos contra a própria população, num show com 20 mil jovens, apenas para gerar um clima de pânico para justificar o endurecimento da ditadura militar", diz o procurador da República, Antonio do Passo Cabral, que assina a denúncia com Sergio Suiama, Ana Cláudia de Sales Alencar, Tatiana Pollo Flores, Andrey Mendonça e Marlon Weichert.

Para eles, os crimes, além de terem sido cometidos após a Lei da Anistia (1979), ocorreram em um contexto de "ataque sistemático ou generalizado a uma população civil" e são imprescritíveis, sendo considerados crimes contra a humanidade, tanto pelo Direito Internacional como por decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos contra o Brasil. O MPF sustenta ainda que a Constituição de 1988 considerou imprescritíveis "ações de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático".

Conforme as investigações, o ataque foi planejado "minuciosamente" desde um ano antes, com a participação de outros militares, já mortos. Havia um núcleo de planejamento e um núcleo operacional, que tinham como elo o tenente-coronel Freddie Perdigão Pereira, vulgo "Dr. Flávio": ele transmitia aos agentes as ordens de missão.

Segundo o MPF, o então major e hoje general Edson Sá Rocha, o "Dr. Sílvio", outro denunciado, foi quem apresentou o plano de explodir o Riocentro, ainda em 1980. "O então chefe da Central de Operações de Informações do DOI, o hoje coronel Romeu Antonio Ferreira, proibiu a execução do plano naquele ano. Porém, um ano depois, com a saída de Romeu do DOI, o atentado ocorreu."

Em depoimento ao Ministério Público, o general Newton Cruz afirmou aos procuradores que soube do planejamento, mas não fez nada para evitá-lo. "Pela condição que detinha, Newton Cruz podia e devia interromper a execução, ordenando que o atentado cessasse ou informando as autoridades de segurança pública para que interviessem." Um mês depois do atentado, ele teria ainda se reunido com dois integrantes do DOI, do chamado "grupo secreto", responsáveis por outros atentados a bomba além do Riocentro.

O ex-delegado Claudio Antonio Guerra, autor do livro Memórias de uma Guerra Suja, também é denunciado por homicídio doloso tentado, associação criminosa armada e transporte de explosivo. Segundo depoimento ao MPF, a missão da equipe que ele comandava foi "atribuída pessoalmente" pelo coronel Freddie Perdigão.

"Todos os componentes desta equipe tinham ciência de que haveria o ataque a bomba e colaboravam para o êxito da ação criminosa, só não sabiam como o ataque ocorreria, qual ou quais equipes o executariam, e quem mais estaria envolvido (quais os componentes das outras equipes), tudo em razão da compartimentação das informações. Mas o denunciado e sua equipe tinham conhecimento das bombas e aderiram voluntariamente ao plano do ataque ao Riocentro, contribuindo para seu fim criminoso", afirma a denúncia, que inclui ainda o general reformado Nilton Cerqueira (então comandante da Polícia Militar do Rio) e o major reformado Divany Carvalho, o "Dr. Aureo". Este último foi responsável por retirar do Puma outros objetivos que pudessem incriminar os militares – no veículo, além de três bombas (a que explodiu e duas no banco traseiro), havia uma granada e uma pistola.

"As investigações ainda prosseguem para identificação precisa de outros indivíduos nos crimes", diz o procurador Cabral. "O MPF segue algumas vertentes investigativas que foram traçadas estrategicamente para desvelar a trama em todas as suas nuances."

Fonte: Rede Brasil Atual
 


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