O cinema brasileiro tenta, há décadas, jogar luz sobre o que se passou no país desde o triunfo do golpe militar de 1964. No calor da hora, dois cineastas enfrentaram o tema. O primeiro foi Paulo Cezar Saraceni, com O Desafi o (1965). Dois anos depois, Glauber Rocha lançaria o metafórico Terra em Transe, ambientado num país tropical chamado Eldorado.

Saraceni colocou no centro da narrativa o jornalista Marcelo (Oduvaldo Vianna Filho), sem perspectivas frente à grande desilusão política trazida pelo golpe militar, agravada, ainda, por insatisfações amorosas. Impotente e melancólico, ele não sabe o que fazer, pois companheiros são presos pela nova ordem e o cotidiano na redação do jornal onde trabalha o decepciona.

Num dos momentos mais lembrados do filme, assistimos a vigorosa inserção documental do show Opinião, primeiro projeto artístico de resistência à ditadura recém-instalada. Bethânia, que substituíra Nara Leão, a garota Zona Sul, soma-se ao sambista Zé Ketti (a voz do morro) e a João do Vale (a voz dos migrantes nordestinos) para cantar Carcará e enunciar dados estatísticos que dão conta da tragédia social brasileira.

Terra em Transe

O caso Terra em Transe é mais complexo, em todos os sentidos. Na superfície, o filme nada tem a ver com o golpe. Afinal, gira em torno de Paulo Martins (Jardel Filho), um intelectual que se liga a três homens poderosos: o senador Porfírio Diaz (Paulo Autran), político anticomunista ligado ao capital internacional e candidato ao governo de Eldorado; Felipe Vieira (José Lewgoy), vereador e candidato ao governo da província de Alecrim, e Júlio Fuentes (Paulo Gracindo), o maior empresário do país.

Mas, em suas camadas profundas, Terra em Transe constrói poderosa parábola sobre o poder, ambientada no Brasil (Eldorado) e na Guanabara (Alecrim) na primeira metade dos anos de 1960. Paulo Martins tem muito do próprio Glauber (e até de Samuel Wainer) e Felipe Vieira lembra características de Carlos Lacerda, eleito governador da Guanabara e apoiador, de primeira hora, do golpe militar de 1964.

O que liga o filme à contrarrevolução militar é a desilusão de Paulo Martins, impotente (em transe) frente ao triunfo das forças conservadoras. O terceiro longa-metragem de Glauber foi interditado pela censura, que decerto o viu como “um ideograma chinês de cabeça para baixo” (segundo Nelson Rodrigues), mais por razão religiosa que política.

O principal incômodo causado aos censores estava no personagem de Joffre Soares, um padre. Exigiram que ele tivesse nome. Ou seja, que se tornasse um indivíduo e não um representante da Igreja, aquela que marchara com Deus, a Família e a Propriedade. Terra em Transe, liberado, chegou aos cinemas e causou um dos maiores e mais acirrados debates da história cultural do país. Hoje é considerado, por boa parte da crítica, o maior fi lme brasileiro de todos os tempos.

Com o recrudescimento da censura no pós AI-5 (dezembro de 1968), os cineastas brasileiros de maior empenho cultural mergulharam no que Antônio Houaiss definiu como “Neo-Barroquismo”. Ou seja, passaram a realizar filmes que, de tão alegóricos e herméticos, tornaram-se incompreensíveis ao grande público. Com o fim do AI-5, em 1979, um número maior de diretores fez do golpe de Estado e, em especial, da repressão à guerrilha urbana, seus temas preferenciais.

A pesquisadora Caroline Gomes Leme mostra no livro A Ditadura em Imagem e Som (Unesp, 2014), que de 1979 a 2009, foram realizados mais de 70 filmes sobre a queda de Goulart e as lutas de resistência à ditadura. Vale acrescentar que nos três últimos anos, novas abordagens (caso dos documentários Marighella e O Dia Que Durou 21 Anos) ganharam relevo qualitativo e quantitativo.

Cabra Marcado para Morrer

Nenhum dos filmes, ficcionais ou documentais, sobre os anos da ditadura implantada em 1964 atingiu a potência de Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho. Até porque o cineasta estava em ação na região das Ligas Camponesas nordestinas no exato momento em que o golpe triunfou (na noite de 31 de março para primeiro de abril de 1964). Coutinho e equipe filmavam, com produção do Centro Popular de Cultura, da União Nacional dos Estudantes (CPC-UNE), longa ficcional intitulado “Cabra Marcado para Morrer”.

Acusada de subversão, a equipe do filme foi caçada (sim, com cê de cedilha) pelos militares, acusada de atuar às expensas do “ouro de Moscou”. O diretor escondeu os negativos do pouco que filmara.

Não houve outra saída senão abandonar a reconstituição da ação das Ligas Camponesas, centrada na trajetória de um de seus principais líderes, João Pedro Teixeira, e de sua mulher, Dona Elizabeth, mãe de onze filhos.

Quando as filmagens do projeto original começaram, coube a um “ator” (natural da região de Sapé, na Paraíba) representar o líder camponês, assassinado pelo latifúndio, em 1962. Dona Elizabeth interpretava a si mesma. Com a equipe do filme desmantelada pelo golpe, a viúva de João Pedro Teixeira cumpriu sete meses de prisão. Ao ser libertada, fugiu para uma cidadezinha do Rio Grande do Norte, e sob nome falso, transformou-se em lavadeira, cozinheira e professora de alfabetização, quando alguém descobria que sabia ler e escrever.

A ditadura militar durou 21 anos. O mesmo tempo de duração da vida clandestina de Dona Elizabeth. Ao retomar as filmagens de Cabra Marcado para Morrer, já como documentário, Coutinho reencontrou sua “atriz”. E saiu em busca dos onze fi lhos da líder camponesa (de nove, na verdade, pois uma se suicidara no período inicial do dilaceramento dos Teixeira paraibanos, e com a mãe clandestina estava o menino Carlos).

O maior documentarista brasileiro, que teve morte trágica semanas atrás, devolveu identidade civil à mulher que se escondera sob nome falso e vivia do parco ganho de serviços avulsos. A tragédia de uma família permitiu a Coutinho realizar a anatomia da ditadura brasileira. Um filme único, obrigatório.

Volta dos exilados

Com a revogação do AI-5 (31-12-1978) e a volta dos exilados (graças à Lei da Anistia/1979), os cineastas brasileiros buscaram, na ficção, uma forma de narrar o que se passara. Roberto Farias dirigiu Prá Frente, Brasil (1981), que desagradou à linha dura do regime e causou a queda do presidente da Embrafilme, o diplomata Celso Amorim. O filme chegou até a ser interditado pela Censura.

Depois, foi liberado. Revisto hoje – e comparado, por exemplo, com o vigoroso documentário Cidadão Boilesen, de Chaim Litewski (2009) – “Prá Frente, Brasil” mostra suas gritantes concessões: enredo folhetinesco, pouca ênfase no conjunto do empresariado que ajudou a bancar a conta da tortura (Operação Oban e assemelhados) e final tributário à gramática do filme de ação hollywoodiano. No campo da ficção, os destaques continuam sendo Nunca Fomos Tão Felizes, cujo slogan nos magnetiza, ainda hoje – O amor clandestino entre pai e filho (Murilo Salles, 1985), Dois Córregos (1999), de Carlos Reichenbach, O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias (Cao Hamburger, 2006), Hoje, de Tata Amaral (2013) e Tatuagem (Hilton Lacerda, 2013). Merecem, também, ser revistos, filmes como Batismo de Sangue (Helvécio Ratton, 2007), Cabra Cega (Toni Venturi, 2005), Ação entre Amigos (Beto Brant, 1998), Lamarca (1994) e Zuzu Angel (2006), ambos de Sérgio Rezende. Vale conferir também O Que É Isto, Companheiro? (Bruno Barreto, 1998), apesar de toda polêmica que causou, por demonizar (ou infantilizar) guerrilheiros, ao mesmo tempo em que buscava dar ao torturador a complexidade negada aos torturados. Perda de tempo é ver O Bom Burguês (Oswaldo Caldeira, 1979) e Sonho e Desejo (Marcelo Santiago, 2006), fi lmes de grandes fragilidades conceituais e narrativas.

Documentário

Os melhores filmes brasileiros sobre a ditadura militar foram realizados por documentaristas, como os já citados Eduardo Coutinho e Chaim Litewski, aos quais se somam Leon Hirszman (ABC da Greve), Silvio Tendler (Jango), Renato Tapajós (o excelente Linha de Montagem), João Batista de Andrade (Vlado, Trinta Anos Depois), Vladimir Carvalho (Conterrâneos Velhos de Guerra), Silvio Darin (Hércules 56), Roberto Nader (Operação Condor) e Camilo Tavares (O Dia Que Durou 21 Anos). A estes filmes somam-se títulos comandados por qualificado time feminino, que trouxe saudável arejamento à abordagem do que se passou, entre 1964 e 1984, no Brasil. A mais ativa e produtiva das diretoras que voltaram suas câmaras ao período é Lúcia Murat. Seus filmes Que Bom Te Ver Viva (1989) e Uma Longa Viagem (2012) constituem programa obrigatório.

Mesmo caso dos excelentes Diário de Uma Busca, de Flávia Castro, e Marighella, de Isa Grispum Ferraz. E com estreias programadas para os próximos meses estão mais dois bons títulos desta sensível safra feminina: Setenta, de Emília Silveira (lançamento em maio), e Meus Dias com Ele, de Maria Clara Escobar. Emília aborda, em seu primeiro longa, a história dos setenta presos políticos banidos para o Chile em troca do embaixador suíço Giovanni Bucher, seqüestrado em 1970. A diretora estreante poderia ter feito mais um documentário político sobre a guerrilha urbana. Só que foi além.
Imprimiu afeto e humor a sua narrativa, além de nos revelar episódio pouco conhecido de nossa história política. Maria Clara Escobar, por sua vez, registrou perturbador depoimento de seu pai, o filósofo brasileiro (radicado em Portugal), Carlos Henrique Escobar.

Filmes, documentários e livros fundamentais para entender melhor o período:

Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho (1984);

Nunca Fomos Tão Felizes, de Murilo Salles (1985);

Cidadão Boilesen, de Chaim Litewsky (2009);

Diário de Uma Busca, de Flávia Castro (2012);

Uma Longa Viagem, de Lúcia Murat (2012);

Jango, de Silvio Tendler (1984);

Linha de Montagem, de Renato Tapajós (1984);

O Dia que Durou 21 Anos, de Camilo Tavares (2013);

Hoje, de Tata Amaral (2013)

Marighella, de Isa Grispum Ferraz (2012)

Livros
✓ 1964: A Conquista do Estado, de René Armando Dreifuss (Vozes, 1980)

✓ Além do Golpe – Versões e Controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar, de Carlos Fico (Record, 2004)

✓ O Grande Irmão – Da Operação Brother Sam aos Anos de Chumbo, de Carlos Fico (Civilização Brasileira, 2008)

✓ Ditadura e Democracia no Brasil: Do Golpe de 1964 à Constituição de 1988, de Daniel Aarão Reis (Zahar, 2014)

✓ 1964 – O Golpe, de Flávio Tavares (Editora L&PM, 2014)

✓ Ditadura em Som e Imagem, de Caroline Gomes Leme (Editora Unesp, 2013)

✓ João Goulart – Uma Biografi a, de Jorge Ferreira (Civilização Brasileira, 2011)

✓ 1964 – O Golpe Que Derrubou um Presidente e Instituiu a Ditadura no Brasil, de Jorge Ferreira e Ângela de Castro Gomes (Civilização Brasileira”, 2014)

✓ Ditadura: O Que Resta da Transição? – Organizado por Milton Pinheiro. Com artigos de Lincoln Secco, Anita Prestes, Marco Aurélio Santana, Adriano Codato, Décio Saes, João Quartim de Moraes, entre outros (Editora Boitempo, 2014)

✓ A Ditadura Que Mudou o Brasil – 50 Anos do Golpe Militar de 1964. Organizado por Daniel Aarão Reis, Marcelo Ridenti e Rodrigo Patto Sá Motta (Zahar, 2014)

✓ A Ditadura Envergonhada, A Ditadura Escancarada, A Ditadura Derrotada, A Ditadura Encurralada – Quatro volumes de Elio Gaspari, lançados entre 2002 e 2004, pela Companhia das Letras e, agora, reeditados e ampliados (Intrínseca , 2014)

✓ Em Busca do Povo Brasileiro: Artistas da Revolução, do CPC à Era da TV, de Marcelo Ridenti (Record, 2000)

✓ A História na Primeira Página, de Francisco Carlos Teixeira da Silva (Multifoco, 2013)

✓ Os Anos de Chumbo: A Memória Militar sobre a Repressão, de Maria Celina D’Araujo, Gláucio Ary Dillon e Celso Castro (Relume Dumará, 1994)


Por Maria do Rosário Caetan, Brasil de Fato

 


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