O golpe civil-militar, que derrubou o presidente João Goulart e provocou 21 anos de repressão e autoritarismo no Brasil, completa 50 anos nesta segunda-feira, dia 31 de março. Além do rastro de perseguição, torturas e violência, com centenas de mortos e desaparecidos, representou atraso político e aumento da desigualdade social no país.

Houve também participação de civis, especialmente do empresariado, inclusive banqueiros, no golpe militar. Pesquisadores elaboraram trabalhos que mostram a forma como as empresas se beneficiaram e apoiaram a ditadura militar no país.

Em seu trabalho de mestrado em História, Jorge José de Melo analisou o financiamento do empresariado paulista à Operação Bandeirantes (Oban), estrutura governamental que antecedeu o Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi).

O jornalista e escritor Juremir Machado da Silva vai além. "Não foi apenas um golpe militar. Nem somente um golpe civil-militar. É verdade que empresários, governadores e militares atuaram em sintonia. Tem faltado, porém, um elemento no banco dos réus: a mídia. O golpe de 1964 foi midiático-civil-militar. O banco dos réus jamais foi formado. Militares, torturadores, golpistas de todos os naipes e mídia se autoanistiaram."

"É hora de exumar esses cadáveres guardados em nossos armários. Alguns ainda se exibem em vitrines na condição de paladinos da democracia. Os militares jamais mudaram de versão: teriam agido para salvar o país do comunismo e garantir a \’verdadeira\’ democracia. Os civis golpistas recorrem, quando saem de um mutismo estratégico, a argumentos semelhantes. A mídia tem sido mais ardilosa: reescreveu a história e a própria história dando-se, aos poucos, um papel heroico de resistência. Houve jornalistas que apoiaram o golpe e resistiram à ditadura. Os grandes jornais, de maneira geral, apoiaram o golpe e a ditadura", analisa Juremir.

Bancários

Os bancários também foram vítimas da ditadura. Os golpistas determinaram a intervenção em vários sindicatos. Foi o caso de São Paulo, com a deposição de sua diretoria eleitas e a prisão de várias lideranças, entre elas o presidente Pedro Francisco Iovine, que passou 56 dias detido no Dops de São Paulo.

"Sofri tortura psicológica. O delegado dizia que eu seria colocado em um navio e jogado aos tubarões. Também me prometeram o pau de arara (método de tortura), mas de fato não sofri tortura física, como aconteceu com muitos companheiros", conta o bancário aposentado, hoje com 91 anos.

A secretária-geral eleita do Sindicato dos Bancários de São Paulo e secretária-geral da Contraf-CUT, Ivone Maria da Silva, destaca que a categoria empreendeu grande resistência à ditadura, mesmo com a perseguição a diversos trabalhadores. "O Sindicato sempre lutou e continuará lutando em defesa da democracia em nosso país e por uma sociedade mais justa."

O Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro lembra o caso do bancário do Banco do Brasil, Aluísio Palhano Pedreira Ferreira, por duas vezes presidente, com atuação heroica na luta pela liberdade e a democracia.

Em 1964, ele teve seus direitos políticos cassados e passou a ser caçado pelos órgãos de repressão. Asilou-se no México em fins de 1964, indo depois para Cuba. Ao regressar ao Brasil, clandestinamente, manteve contato com a família pela última vez em 24 de abril de 1970. Depois, o silêncio. Nos registros oficiais constam que ele teria sido preso em 9 de maio de 1971, em São Paulo.

Segundo o preso político Altino Dantas Júnior, seu companheiro de cela, em correspondência encaminhada ao então ministro do Supremo Tribunal Militar, general Rodrigo Otávio Jordão Ramos, Palhano foi morto no DOI-Codi, na Rua Tutoia, em São Paulo, onde teria ficado preso durante 11 dias.

Torturas

"Afogavam minha cabeça em um tanque com água e me queimavam com cigarro aceso para que eu confessasse onde estavam as armas do Sindicato dos Operários Navais. As armas que tínhamos eram a inteligência e a língua. Faço votos de que essa desgraça da ditadura militar nunca mais aconteça. Esse passado não pode ser esquecido e ir para a lata do lixo." O depoimento é do ex-operário naval Benedito Joaquim Barbosa, uma das vítimas da ditadura instalada no Brasil após o golpe de 1964.

"Durante cerca de dez dias, minhas crianças (de quatro e cinco anos) me viram sendo torturada na cadeira de dragão, me viram cheia de hematomas, com o rosto desfigurado. Eles falavam que os dois estavam sendo torturados. Disseram: \’Nessas alturas, sua Janaína já está dentro de um caixãozinho\’. Disseram também que eu ia ser morta", conta outra vítima, Maria Amélia Teles, que também teve o marido e a irmã, grávida de oito meses, presos e torturados pelas forças de repressão do Estado.

Benedito e Maria Amélia são testemunhas de uma época em que discordar era crime. Muitos não sobreviveram.

A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, tem uma lista oficial de 362 nomes, entre mortos e desaparecidos. Mas grupos de camponeses e indígenas solicitaram à Comissão Nacional da Verdade (CNV) a inclusão de mais de 2 mil nomes à lista. Muito bancários estão entre os nomes.

Resgate

Em artigo publicado na Revista do Brasil de março, o jornalista Mauro Santayana aborda a importância do aniversário do golpe como forma de se resgatar o passado e evitar que ele se repita. "Pelos abusos cometidos desde o primeiro momento, e que se multiplicaram depois com o fortalecimento do radicalismo antidemocrático e da repressão mais sanguinária, era para se tratar de um episódio já execrado pela sociedade brasileira", diz o colunista sobre o regime militar que governou o país entre 1964 a 1985.

Mas não é o que ocorre, segundo Santayana: "Como há 50 anos, \’forças ocultas\’, que já não se importam em não parecer ocultas, querem pintar o Brasil como se estivéssemos à beira do abismo, para defender velhos e perigosos caminhos de salvamento da Pátria. (…) Pela internet desferem-se ataques à democracia e crescem as pregações golpistas, com a defesa do recurso à violência e à tortura, crescem no mesmo meio em que vicejava nos anos 1960. Como ocorria às vésperas de março de 1964, multiplicam-se publicações, \’filósofos\’ e \’comentaristas\’ que professam um anticomunismo esquizofrênico e patológico – já que claramente psicótico e desprovido de qualquer contato com a realidade -, como se estivéssemos em plena Guerra Fria, e se sustentam pela distorção da história e da verdade, como se vivêssemos em outro planeta, situado em hipotético universo paralelo."

Atraso

Para o cientista político Caio Navarro de Toledo, o que ocorreu em março de 1964 foi "um golpe contra a incipiente democracia política brasileira nos pós-1946; movimento contra as reformas sociais e políticas defendidas pelo governo João Goulart (presidente deposto pelo golpe); e uma ação repressiva contra a politização dos trabalhadores e o promissor debate de ideias que, de norte a sul, ocorria no país. O golpe de 1964 teve consequências perversas e nefastas no processo de desenvolvimento econômico, político e cultural do Brasil que ainda se refletem nos tempos presentes".

Desigualdade

Nem mesmo na economia a ditadura representou avanço. O professor da Esalq (Escola Superior de Agricultura) e especialista em distribuição de renda no Brasil, Rodolfo Hoffman, destaca que, por trás do propagado "milagre econômico" veio o aumento da desigualdade social. O Índice de Gini, que mostra o nível da concentração de renda no país, era de 0,5 em 60, subiu para 0,56 em 1970 e para 0,59, em 1980 (quanto mais perto de zero, mais igualitário).

Ele atribui o fato principalmente a três fatores: "a drástica queda no valor do salário mínimo real durante o período; a diminuição do poder de barganha dos sindicatos de trabalhadores, que foram objeto de frequentes intervenções; e a instituição do FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço) em 1967, substituindo o sistema de indenização por despedida injusta e de estabilidade do emprego da CLT. O FGTS, segundo o professor, "veio facilitar ao empresário a rotatividade dos empregados, particularmente daqueles não-qualificados."

Democracia

Para o advogado Pedro Dallari, coordenador da Comissão Nacional da Verdade, é preciso conhecer o que ocorreu nesse período para valorizar a vida em democracia. "Acho que a Comissão e seu relatório final têm muita importância porque ajudará na realização do direito que toda sociedade tem à memória e à verdade. A sociedade que conhece sua memória se protege mais de violações à democracia. O quadro democrático instaurado em 1985, confirmado com a Constituição de 1988, representa um amadurecimento em relação ao período anterior. O país amadureceu. Tem hoje um quadro institucional mais sólido e isso deve ser mantido."

O relatório final da Comissão Nacional da Verdade será divulgado em 10 de dezembro de 2014, data em que se comemora o Dia Internacional dos Direitos Humanos.

Fonte: Contraf-CUT com Seeb São Paulo e Seeb Rio
 


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