por: Saul Leblon

Marina precisa esconder a questão principal em jogo nestas eleições. Por isso é crucial expô-la, como Dilma começou a fazer no debate da CNBB, nesta 3ª feira:

‘A principal lição da crise de 2008 é a necessidade de impor uma regulação ao sistema financeiro, não o contrário, não o hiperliberalismo’, resumiu a Presidenta, fuzilando o projeto do BC independente , do voto e da democracia, encampado pela candidata do PSB.

Não é um assunto palatável. Mas é traduzível. Prova-o a tentativa do PSB de interditá-lo no horário eleitoral.

O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, encampou o pedido de Marina de suspender a propaganda petista, na qual se relaciona o impacto dessa proposta num lar assalariado.

Se agiu honestamente, Janot subestima o poder de fogo do arsenal que hoje mantem 100 milhões de desempregados no mundo.

A Europa é uma advertência em carne viva.

Outrora referencia do Estado do Bem Estar Social, o continente não resistiu ao moedor da supremacia financeira. Paga em libras de carne humana a purga da desordem neoliberal, sob o comando dos bancos que a causaram.

O saldo da reciclagem até o momento sugere que a propaganda de Dilma é até cautelosa.

São mais de 20 milhões de desempregados na zona do euro; 119,6 milhões de pessoas (24,2% da população) transitam no limiar da pobreza em toda a Europa; US$ 1,3 trilhão foram entregues aos bancos europeus para salvá-los deles mesmos, enquanto as filas da Cáritas fornecem mais de um milhão de pratos de comida só na Espanha .

A contradição que a propaganda de Dilma condensa metaforicamente pode ser constatada de outra forma e ao vivo aqui mesmo.

Quando Marina Silva sobe nas pesquisas, as bolsas disparam; as consultorias exultam; as ações de bancos escalam píncaros de valorização. Manchetes faíscam sulfurosas.

Quando a ONU informa que no ciclo de governos do PT o Brasil reduziu a miséria em 75% e praticamente erradicou a fome (restrita a 1,7% da população), qual é a receptividade do glorioso jornalismo de economia?

Modesta, para sermos generosos.

A saúde dos mercados e a deriva da sociedade, como se vê em diferentes latitudes do planeta, não são contraditórias com essa concepção de eficiência econômica excludente. A mesma encampada agora pelo PSB que um dia foi de Arraes, hoje é o cavalo onde floresce o enxerto do hiperliberalismo denunciado por Dilma.

A confusão semântica entre um partido socialista tomado pela ideologia rentista e uma ex-seringueira que a isso empresta sua biografia não é involuntária.

Sem um lubrificante à altura do estupro, seria muito difícil vender ao eleitor agenda de um neoliberalismo desmoralizado.

O mundo conspira contra Marina, mas ninguém diz.

O jornal Valor desta 4ª feira (17/09) informa-nos em rodapé discretíssimo: ‘Os Estados Unidos sofreram mais um ano de estagnação da renda, uma vez que a recuperação da economia não consegue se traduzir em aumento da prosperidade para a média das famílias (…) cuja renda real aumentou apenas 0,3% em 2013…’.

Significa dizer que a renda média na principal economia capitalista do planeta encontra-se abaixo daquela de 25 anos atrás.

Mas os níveis de desigualdade regrediram ao padrão da Europa no início do século XX. Informa o livro de Thomas Piketty (‘O capital’), estranhamente ausente do debate eleitoral brasileiro.

Não é uma tragédia sem causa.

O lucro combinado dos seis maiores bancos americanos- JPMorgan Chase, Goldman Sachs, Citigroup, Wells Fargo, Morgan Stanley e Bank of America – saltou em 2013 para o seu maior patamar desde 2006: um aumento de ganho líquido de 21% ; ou US$ 74,1 bilhões em moeda sonante , segundo informou a Bloomberg.

A dificuldade da recuperação norte-americana, a mais lenta de todas, que fez o Fed, nesta 4ª feira, sinalizar a manutenção das taxas de juros baixas por ‘tempo indeterminado’ –para decepção do rentismo local e global– , não tem têm origem, porém, na crise de 2008.

O fio que interliga a persistente disseminação da pobreza nos EUA antes, durante e depois do colapso de 2008, é a hipertrofia do poder financeiro –que Marina quer vitaminar no Brasil.

É esse o elo entre a rastejante recuperação atual sob a batuta de Obama, a etapa aguda da crise que a antecedeu — capitaneada por Bush Jr– e, antes ainda, o período de apogeu que originou o desmonte regulatório do sistema financeiro legado por Roosevelt. Obra demolidora iniciada por Reagan (1981-1989), seguida da consolidação da hegemonia rentista sob a batuta do democrata Bill Clinton (1993-2001).

Radiografar essa espiral e traduzi-la para o idioma político destas eleições não é recorrer ao discurso do medo, como querem alguns.

São fatos que a retrospectiva norte-americana ilustra exaustivamente. Por exemplo:

1. Os salários da força de trabalho nos EUA estão em queda ou estagnados desde os anos 90;

2. Para 60% dos trabalhadores americanos , o valor da hora/trabalho estagnou ou caiu;

3. Em 1996 a renda média familiar já era inferior a de 1986 (uma corrosão que persiste);

4. O emprego estável esfarelou; a fatia dos trabalhadores com cerca de 10 anos no mesmo emprego caiu de 41% em 1979 para 35,4% em 1996 ( e embicou nos anos mais recentes);

5. A desigualdade se acentuou: a renda de uma família padrão de classe média encolheu, apesar do borbulhante fastígio rentista; apenas 10% dos lares abocanharam 85% dos ganhos propiciados pela farra financeira dos anos 80/90;

6. O trabalho se degradou: ao conquistar uma nova vaga, um desempregado ganha, em média, 13% menos que no trabalho anterior; em 1997, 30% dos empregos já operavam em tempo parcial, evidenciando uma economia que simultaneamente abdicou da indústria em troca dos ‘custos chineses’;

7. Nessa mutação estrutural , enquanto a fatia da renda apropriada pelos lares mais ricos (o 1% dos aplicadores em ativos) cresceu de 37,4% para 39%, o universo de lares sem ingressos ou com rendimento negativos saltou de 15,5% para 18,5%; na população negra, 31% dos lares tinham renda zero ou negativa em 1995.

Repita-se: tudo isso antes do colapso da subprime.

Esse paradoxo feito de desmonte industrial e exploração extrema, de um lado, e bonança rentista, do outro, só não explodiu antes graças à válvula de escape do endividamento maciço das famílias, que atingiu seu limite no estouro da bolha imobiliária, em 2008.

Os antecedentes mostram que a advertência feita pela propaganda de Dilma não é descabida.

É crucial para um projeto de desenvolvimento equitativo recompor e aprofundar a regulação do sistema financeiro, incluindo-se aí o controle sobre a mobilidade de capitais.

Foi isso que Dilma começou a dizer na CNBB. E Precisa continuar a dize-lo, de forma cada vez mais clara.

É isso que faz a propaganda vetada pelo procurador Janot.

Sem desmontar a supremacia financeira –e isso significa dar ao governo, ao Estado e à democracia os instrumentos de comando sobre o capital– será impossível consolidar um novo ciclo de investimento e alterar a redistribuição do excedente econômico no país.

Esse é um dos maiores desafios do desenvolvimento no século XXI

Mas para Marina o nome da crise é PT, não capitalismo destrambelhado.

Para Marina não existe conflito entre o fastígio dos banqueiros, e dos mercados financeiros, e os interesses populares.

O conflito que existe na sua constrangedora leitura da história é entre bons e maus; entre corruptos e elites bacanas; entre dilmas gerentonas e necas solícitas; entre o PT degenerado

–que “colocou um diretor para assaltar os cofres da Petrobrás”– e a virtuosa turma de novos amigos dos mercados.

É nessa toada que Marina, Aécio e seus apêndices pretendem levar a flauta da campanha até o fim.

As candidaturas progressistas não podem sancionar essa anestesia do discernimento popular.

Discurso do medo, uma ova, é preciso dizer, mimetizando a sagaz Luciana Genro.

A crise evidenciou que na ausência de regulação estatal da finança, a genética autodestrutiva do sistema passa a operar em condições de baixa demanda efetiva, elevado desemprego e especulação suicida.

A superação do impasse só virá se e quando o Estado detiver maior poder de comando para exercer seu papel indutor do crédito e do investimento produtivo.

Contra isso se insurge o conservadorismo. E ao seu desfrute se oferece Marina Silva e o seu tripé: BC independente; desregulação do pré-sal e desmonte da CLT.

Discurso do medo? Uma ova.

Fonte: Carta Maior
 


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