O que leva pessoas educadas, profissionalmente bem colocadas, gentis no trato pessoal, a comparecer a um ato público contra a corrupção, como o realizado no último dia 15 de março, na avenida Paulista, em São Paulo, e para lá levar cartazes, faixas e rimas podres com ofensas de cunho sexista e de ódio contra a presidente Dilma Rousseff –pelo fato de ela ser mulher?

“Quem se habilitaaaa… A comer a Dilma sem birita?”
“Dilma, arruma logo um namorado e para de foder o Brasil.”
“Dilma, pare de ferrar o Brasil e vai transar.”
“Dilma, biscate véia.”
“Dilma, mal comida.”
“Dilma, sapatão.”
“Dilma vaca.”
“Ei, Dilma!, vai tomar no cu!”

O que leva pessoas afáveis, amigas até, a jogar fora toda a sua convicção sobre a importância da solidariedade, da caridade, do amor e, de repente, vestir uma camiseta com a estampa de uma mão com quatro dedos sob o lema: “Basta!”

É a Lula que se refere, por razões óbvias, a tal estampa.

(Uma das pessoas que trajavam a indecorosa camiseta com a mão de quatro dedos era Ana Eliza Setubal, mulher de Paulo Setubal, da família que controla o banco Itaú)

Se fossem — Lula ou Dilma— anões, negros, homossexuais, gagos, cegos, surdos, obesos, sem-braços ou sem-pernas, como seriam as cruéis estampas?

Deixo para os representantes de minorias ou dos deficientes físicos, calejados resistentes da lida contra o preconceito, a tarefa de imaginar o circo de horrores que seria retratado —como se toda a sua humanidade pudesse ser reduzida a um traço físico ou psíquico.

Teve grosserias para todos os gostos e estômagos. O meu passou mal.

A coisa podia ficar pior —e ficou. No carro de som que pedia a “Intervenção Militar Já”, um notório torturador e assassino de oposicionistas políticos da Ditadura, de nome Carlos Alberto Augusto, conhecido pela alcunha de “Carlinhos Metralha”, era disputado como celebridade para selfies.

“Metralha” vangloria-se de sua participação no chamado “Massacre da Granja São Bento”, onde foram assassinados vários militantes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), em janeiro de 1973. Na ocasião, a jovem Soledad Barrett foi entregue, grávida, para ser executada por seu próprio marido, o traidor José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo.

No final do “Dia contra a Corrupção”, o ex-policial festejava: “Posei hoje para retratos com mais de 800 pessoas”. Parte importante de seu discurso era o lamento por não ter conseguido metralhar mais gente em sua carreira homicida. “Faria com o maior prazer”, disse.

Em outros tempos, essa gente nem daria as caras, execrada que seria. Mas, na manifestação de domingo, a massa vestida com a camisa do fracasso do 7 a 1, aplaudia, gritando: “A nossa bandeira jamais será vermelha”, seguido pelo indefectível “Ei, Dilma, vai tomar no cu!”

É claro que a Rede Globo, fazendo tomadas aéreas, de helicóptero ou do alto dos prédios, não mostrou nada disso. Os locutores da emissora preferiram enaltecer “o caráter pacífico do protesto”, “a grande manifestação em prol da democracia”.

A verdade daquela violência simbólica toda, cantada em verso e prosa, impressa em cartazes e camisetas, passou longe das câmeras da emissora do Rio, que preferiu apresentar uma versão adocicada da barbárie, afim de não assustar os incautos.

Como chegamos a este ponto? Como é possível que o discurso do ódio se tenha entranhado a tal ponto em parcela da oposição?

Costuma-se comparar a atual campanha anti-Dilma àquela pelo impeachment de Fernando Collor de Mello, em 1992.
Mas elas têm o sinal trocado em quase tudo. Provavelmente, também no desenlace.

Como jornalista, tive a oportunidade de cobrir a campanha pelo impeachment de Collor.

À frente dela estiveram o maior símbolo do MDB que combateu a Ditadura, o deputado Ulysses Guimarães; o fundador do PSDB e depois governador de São Paulo, Mário Covas; o presidente do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, os então presidentes da Associação Brasileira de Imprensa, Barbosa Lima Sobrinho, da Ordem dos Advogados do Brasil, Marcello Lavenère, e da União Nacional dos Estudantes, Lindberg Farias, além de milhares de entidades e organizações da sociedade civil, artistas e intelectuais.

No ato do dia 15, as grandes figuras da oposição, os artistas, os intelectuais não deram as caras.

Até teve um Jair Bolsonaro (PP-RJ) aqui, um Andrea Matarazzo (PSDB-SP), e um Aloysio Nunes Ferreira (idem) acolá, além de sub-celebridades do segundo time do entretenimento, como Wanessa “Playback” Camargo, Danilo Gentili e Juca Chaves.

Convenhamos, até na época do “Cansei” o camarote vip tinha mais atrações.

Onde estavam Fernando Henrique Cardoso, Aécio Neves, Geraldo Alckmin, a oposição no Congresso? Enfurnados em sua covardia, sabe-se lá onde.

Sem referências, sem lideranças, o jeito foi a galera fina, elegante e sincera, vestida com as camisetas oficiais da CBF, aquelas do 7 a 1 (R$ 149,90 na loja virtual Netshoes), chafurdar nos dicionários chulos de palavrões.

Na ausência da dimensão pública representada pela grande política, sobrou espaço para os extravazamentos dos ódios de bombados valentões, cosplayers de Rambos, em coturnos e trajes militares, pedindo a volta da Ditadura
Gol contra pior do que no 7 a 1.

“Eu não vim aqui pra isso. Eu sou contra os militares. Eu perdi amigos na Ditadura”, gritava Maria de Lourdes Di Paula, 57. Professora paulista, Lourdes foi ao ato porque é “contra a corrupção”. Transtornada, ela retirou-se do protesto com mais oito amigas. “A gente é pelo aprimoramento da democracia, não pela destruição dela”, disse.

Por volta das 18h, esgotados manifestantes disputavam um lugarzinho no badalado restaurante Spot, na rua Ministro Rocha Azevedo, vizinho da avenida Paulista, onde uma saladinha da casa sai por R$ 52.

Na porta, duas senhoras perguntavam-se “e agora?”, ao que um fortão com camisa de camuflagem respondeu de bate pronto: “Impeachment nem pensar porque senão vem o Temer e é pior. A única saída é a intervenção militar”.

Elas se assustaram —“Deus me livre de milicos!”— e fugiram para dentro. Foram em busca de um Prosecco para relaxar.

Acabou-se o protesto.

 

Fonte: Blog Jornalista Laura Capriglione
 


Compartilhe este conteúdo: