O maître baiano José Ramos Félix da Silva está em greve desde junho com funcionários de hotéis, bares e restaurantes de Salvador. Os 15 mil trabalhadores sindicalizados da categoria – seriam uns 20 mil, não fossem os terceirizados – pedem 11% de aumento, para repor a inflação do ano passado.

Por causa da recessão, os empresários oferecem 3% e não querem pagar retroativamente a janeiro, a data-base, embora as negociações façam parte da convenção coletiva de 2016. No acordo anterior, vencido em dezembro de 2015, o sindicato conseguira 60 dias de estabilidade provisória para mulheres que tenham bebê, adicionais aos 120 da licença-maternidade legal, uma vitória especial para uma categoria de maioria feminina (60%). “No mínimo queremos manter o que conquistamos. O que o patrão puder tirar, a gente sabe que ele tira”, diz Ramos, líder do sindicato.

O caso dos garçons, camareiras e cozinheiros de Salvador reúne todos os itens na mira de uma reforma trabalhista silenciosamente em curso nos tribunais. É o resultado de um arranjo entre integrantes da alta cúpula do Judiciário e o presidente Michel Temer, defensor da flexibilização de direitos, receoso de que uma proposta sua ao Congresso afunde ainda mais a sua popularidade, ele que é reprovado por 51% dos brasileiros, conforme a última pesquisa CNT/MDA, da quarta-feira 19. 

Dar poder às negociações entre patrões e empregados, como aquelas em andamento em Salvador, para definir salário, jornada e benefícios, independentemente dos ditames da CLT (1943) e da Constituição (1988), é o coração do plano. Para as negociações iniciarem do zero, a reforma tem um arremate.

Impedir que, na ausência de novo acordo entre chefias e sindicatos, valham os termos da convenção anterior. A renovação automática é uma novidade surgida em 2012 que, se suprimida, ameaçaria a estabilidade extra das recepcionistas e garçonetes soteropolitanas que deem à luz.

A outra perna da reforma é a permissão para a terceirização total, a mesma que, adotada hoje de forma parcial, reduz a tropa do Sindicato dos Trabalhadores de Hotéis, Bares e Restaurantes de Salvador.

 

A intenção do governo é baratear o trabalhador, na suposição de que o empresariado se animará a contratar mais se puder preservar as margens de lucro. Uma tentativa de conter o desemprego, em 11,8%, e de tirar a economia do buraco.

Objetivos similares aos da reforma levada a cabo este ano pelo governo francês, a inspirar suspiros na Confederação Nacional da Indústria, aqui no Brasil, e protestos de rua, greves e violência policial lá na França.

Foi tão complicado emplacar jornada diária de até 12 horas, valores menores de horas extras e indenizações tabeladas por demissão, que o presidente François Hollande, do Partido Socialista, baixou a reforma por decreto, a fim de escapar de pressões e resistência no Parlamento.

Aqui, em trajes neoliberais, Temer também busca fugir do Congresso, de modo a evitar desgaste político. Encontrou parceiros e encorajadores no Supremo Tribunal Federal (STF), na figura do ministro Gilmar Mendes, e no presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Ives Gandra Martins Filho.

Em recentes entrevistas a rádios e tevês, o peemedebista deu pistas sobre os acontecimentos. Na quinta 6, por exemplo, comentou no Jornal da Band que era “interessante como o próprio Judiciário já está começando a fazer uma reforma trabalhista” e que “nós (do governo) não precisamos levar adiante”.

Destinatário de 60 mil reais mensais do Erário entre salário presidencial e aposentadoria como ex-procurador, Temer tocara pela primeira vez no assunto fora do governo durante uma reunião-almoço com investidores estrangeiros em 21 de setembro, em Nova York.

Aos milionários pregou a primazia de acordos entre patrões e empregados ante a CLT. Longe dali, Gandra Filho naquele momento defendia a mesma ideia em um evento em São Paulo e igualmente indicava uma reforma a caminho via STF, onde “temos as duas principais questões trabalhistas, que são a negociação coletiva e a terceirização”. 

O primeiro lance do Supremo na reforma veio em setembro. Foi no processo de um cortador de cana em Pernambuco, Moisés Lourenço da Silva, contra um ex-empregador, a Usina Central Olho D’Água. Da Silva trabalhara na empresa 45 dias como temporário em 2010.

Ia de casa para o canavial umas 4 horas, 4h30 da manhã em um ônibus da usina, pegava no batente às 6 horas, parava de 20 a 30 minutos às 11, dava baixa às 17 e voltava ao lar na mesma condução patronal, rotina repetida a cada cinco dias, com só um de descanso posterior.

Um acordo coletivo entre o sindicato e a usina previa que o tempo dos cortadores no ônibus da empresa não seria considerado expediente nem renderia hora extra, ao contrário do previsto na CLT desde 2001. Em troca, o trabalhador receberia cesta básica na entressafra, energético do tipo Red Bull e pagamento progressivo, conforme cortasse mais cana, entre outras coisas.

Em outubro de 2010, já fora da usina, Da Silva entrou na Justiça, a reivindicar horas extras relativas ao tempo dentro da condução patronal. Em março de 2011, o juiz Edson Luis Brik, da Vara do Trabalho de Nazaré da Mata, noroeste do Recife, deu ganho de causa ao trabalhador, cumpridor na prática de uma jornada diária de 9h30, anotou a sentença.

A usina recorreu, perdeu no TST, o processo foi ao STF e, em 8 de setembro, o relator, Teori Zavascki, deu razão à Usina. Para ele, Da Silva não merecia horas extras, por causa das compensações da convenção coletiva.

É de se perguntar se o acordo era de fato bom para os trabalhadores. Oferecer energético e pagamento progressivo é um convite para o trabalhador passar mais tempo no canavial, vantagem para a usina, portanto.

A decisão de Zavascki ainda terá de ser examinada pelos demais ministros do STF em plenário, mas acaba de ser citada por um colega, em uma liminar, como “mais uma clara demonstração” da tendência de o tribunal abençoar a primazia de acordos perante as leis. A outra “demonstração” mencionada refere-se a um processo nascido em agosto de 2004.

Dois anos antes, a bancária Cláudia Maria Leite Eberhardt deixara o banco estadual catarinense, o Besc, em um programa de demissão voluntário prévio à incorporação da instituição pelo Banco do Brasil (BB). Ela fora à Justiça cobrar mais verbas rescisórias do BB, apesar de ter recebido 133,6 mil reais de indenização, nos termos combinados no PDV.

Em março de 2005, o juiz trabalhista de Florianópolis João Carlos Trois Scalco decidira contra Eberhardt, ela recorreu, o caso foi ao STF e, em março deste ano, a ex-bancária perdeu em definitivo, sob o argumento de que fizera acordo. 

A liminar a apontar a inclinação favorável do Supremo à prevalência das convenções é de Gilmar Mendes, uma espécie de conselheiro jurídico informal de Temer, com quem tem se reunido durante e fora do expediente. A canetada na sexta-feira 14 eliminou a vigência automática dos termos de convenções coletivas nos casos em que uma substituta ainda não foi firmada.

 

Foi um despacho agressivo contra a Justiça do Trabalho, descrita por Mendes como boa demais para os trabalhadores. A ação é de autoria do Conselho Nacional dos Estabelecimentos de Ensino, razão para perguntar-se: Mendes, por controlar uma repartição de ensino, o Instituto de Direito Público (IDP), não deveria ter se declarado impedido? 

Dúvidas à parte, ele tomou uma decisão diferente da pretendida pelo Ministério Público. Na ação, o MP defendeu o caráter de “proteção ao trabalhador” das leis nacionais e que a vigência automática servia para “estabilizar relações trabalhistas”.

Mesmas razões a levar o TST a impor a vigência automática, em 2012, com base em mudanças na Constituição em 2004, segundo as quais, em situações de conflito, haverá dissídio “respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente”.

A chamada ultratividade seria uma forma, na visão do TST, de equilibrar a negociação, ao evitar que os sindicalistas sempre partam do zero, e de tornar as regras conhecidas pelos dois lados. O maître José Ramos desconfia que os donos de hotéis e bares de Salvador gostam da ultratividade.

Ex-funcionário da área contábil do Banco do Brasil, Eduardo Araújo pertence a uma categoria tradicionalmente forte e, como presidente do Sindicato dos Bancários de Brasília, foi um dos líderes da recente greve nacional de 31 dias, a mais longa da história do setor no País.

Para ele, a reforma via Judiciário tende a “baratear o custo anual” que os trabalhadores representam para as empresas, consequência provável da livre negociação de direitos como férias de 30 dias. Pode até facilitar a demissão de grevistas, em virtude da redução de despesas com dispensas.

E o efeito mais delicado, diz ele: “Se o acordado valer sobre o legislado, acredito que vai afetar principalmente as categorias mais frágeis para receber ao menos o salário mínimo, que está previsto na CLT”. 

A terceirização, motivo, juntamente com a informatização, para a tropa de bancários ter caído de 1 milhão para 500 mil dos anos 1990 para cá, é outro aspecto a incentivar a redução salarial. Um funcionário terceirizado tem contracheque 24% menor, em média, conforme estimativas do Dieese, o departamento de estudos sindicais. O liberou geral na terceirização será examinado em breve no Supremo, com o julgamento de um processo contra a empresa do ramo de celulose Cenibra.

 

Ao longo dos tempos, o TST oscilou entre posições mais pró-empresários, como na ditadura, e outras mais favoráveis aos trabalhadores, como na redemocratização. O STF, não. “O Supremo sempre foi muito conservador.

O que faz agora não é diferente do que fez em geral, que é decidir contra o trabalhador”, diz o sociólogo Adalberto Cardoso, especialista em relações de trabalho e hoje diretor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. A Constituição reconheceu o direito de sindicatos representarem trabalhadores, mas só em 2006 o STF aceitou que as entidades pudessem ajuizar ações em nome das pessoas, por exemplo.

Essa tradição da mais alta Corte não impede, porém, que Cardoso se surpreenda com a reforma em curso via STF. “Essas decisões recentes do Supremo são muito mais radicais do que suas decisões conservadoras passadas”, afirma o sociólogo, a prever protestos, greves e conflitos sociais. E o que explicaria a postura do tribunal? “Identidade de classe. Os juízes do Supremo sempre saíram das elites econômicas, inclusive os indicados no governo Lula.”

Em setembro, Mendes e Zavascki receberam 37.476,93 reais, entre salário e um abono de permanência em Brasília, o equivalente a 33 vezes a renda per capita de 1,1 mil dos brasileiros em 2015. A dupla, como todos os juízes do País, tem direito a 60 dias de férias por ano, direito que para os trabalhadores vale a metade e pode se transformar em negociável, a depender do STF.

Justiça seja feita, no entanto. A magistratura nacional como um todo vive no bem-bom. O salário médio dos 17 mil togados foi de 46,1 mil reais no ano passado, dado divulgado na segunda-feira 17 pelo Conselho Nacional de Justiça. São os “verdadeiros marajás do Estado brasileiro”, ao lado dos procuradores, costuma dizer o sociólogo Jessé Souza, ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

A identidade de classe é cultivada de berço, no caso do presidente do TST. Seu pai, o advogado Ives Gandra Martins, pertence ao Conselho Superior de Altos Estudos da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).

Defendeu os bancos em uma das ações mais importantes dos anais do setor, a definir se as instituições deveriam (e elas não queriam) obedecer ao Código de Defesa do Consumidor – foram derrotadas em 2006.

Em 2013, respaldou com um parecer a fracassada tentativa do Serasa de obter dados da Justiça Eleitoral para perseguir caloteiros. É colaborador do think tank direitista Instituto Millenium e seguidor do Opus Dei.

O filho chegou ao TST em 1999, graças às maquinações de Gilmar Mendes, com quem colaborara na então chefia de assuntos jurídicos do Palácio do Planalto do presidente Fernando Henrique. No discurso de posse no comando do tribunal 17 anos depois, em fevereiro de 2016, rendeu homenagens a Mendes, “irmão mais velho, que se preocupa por mim mais do que eu mesmo”.

Aproveitou para deixar claro que sua missão no cargo é aproximar a Corte dos interesses patronais, com decisões que “permitam também justa retribuição às empresas”. E saiu em defesa da terceirização, “realidade econômica irreversível da cadeia produtiva”, opinião oposta à do seu antecessor no posto, Barros Levenhagen.

Já no ano passado, na qualidade de vice do TST, Gandra Filho empenhara-se contra a Justiça do Trabalho. Fora ele o negociador do Orçamento de 2016 do setor na votação do Orçamento geral do País no Congresso. Assistiu impassível a um esquartejamento das verbas, motivo de um motim no TST, com 19 dos 27 ministros a assinar um manifesto em junho contra a perda de recursos.

 

 “É desproteger mais de 45 milhões de trabalhadores, vilipendiar cerca de 10 milhões de desempregados, fechar os olhos para milhões de mutilados e revelar-se indiferente à população de trabalhadores e também de empregadores que acreditam na força da legislação trabalhista”, anotava o texto.

A força da legislação trabalhista não é obstáculo às contratações no Brasil, constatação que pode ser feita a partir do comportamento do mercado de trabalho neste século, avalia o economista José Celso Pereira Junior, ex-diretor do Ipea.

De 2001 a 2014, 22 milhões de pessoas arrumaram ocupação, a renda mensal subiu 28% em termos reais, o número de empregados com carteira assinada passou de 45% para 57% entre 2004 e 2014, a desigualdade caiu. “A melhora aconteceu com a CLT e a Constituição vigentes, foi isso o que viabilizou os ganhos sociais, não o contrário”, diz.

Há quem desconfie até dos efeitos positivos que o governo inclui entre as virtudes da flexibilização. É o caso do economista-chefe da Gradual Investimentos, André Perfeito, uma voz dissonante no mercado financeiro, ninho de defensores da reforma.

Para ele, a transformação da economia brasileira, com peso menor da indústria e novas formas de ocupação, decorrentes, por exemplo, da tecnologia da informação, justifica alguns ajustes na CLT.

O que deveria, no entanto, ser precedido de uma reforma sindical, capaz de tornar as entidades mais representativas. “Coloca-se muito peso na reforma trabalhista, mas ela em si não vai gerar impulso econômico. O que vai criar emprego é a demanda e a retomada do crescimento”, diz, cético com a eventual retomada.

No fim das contas, flexibilização serve apenas para enriquecer o topo da pirâmide social, ao drenar recursos da base e achatar a classe média, visão exposta pelo economista norte-americano Joseph Stiglitz no livro O Preço da Desigualdade, de 2012.

Somente “uma maior proteção dos trabalhadores pode corrigir o que, de outro modo, seria um desequilíbrio do poder econômico”, diz o livro. Uma proteção que “contribui para uma sociedade mais coesa e para melhores postos de trabalho”. 

*Reportagem publicada originalmente na edição 924 de CartaCapital, com o título "O brasileiro em liquidação". Assine CartaCapital.

Fonte: Carta Capital


Compartilhe este conteúdo: