Anatomia de um golpe naufragado

 

Todo golpe de estado fala em “salvar” alguma coisa: a pátria, a nação, a família, a propriedade, o sistema, a economia (os bancos), a tradição, a moralidade e os bons costumes etc.

Pela primeira vez estamos diante de um golpe que não se propõe a salvar nada. Ao contrário, se propõe a destruir tudo: empregos, investimentos, a educação, a saúde, a Petrobras, o pré-sal (aqui não é destruir, é vender), a capacidade de auto-defesa, a tecnologia e a indústria nacionais, o futuro, a política, as eleições o futuro…

Neste sentido, não se pode dizer que ele esteja fracassando. Está cumprindo seus objetivos permanentes, que são estes logo acima descritos. Só não vê quem não quer, só não viu desde o princípio quem não quis. Este princípio aludido foi a guinada para a direita das manifestações (dúbias desde o começo) de 2013, seguida da aplicação da máxima lacerdista em relação à eleição de 2014: a esquerda não deve ganhar, se ganhar não deve poder governar etc. É verdade que houve formas de colaboração das esquerdas: a inépcia jurídica do segundo governo Dilma, a proverbial inapetência petista para mexer na questão da mídia eternamente golpista, a aplicação parcial do receituário neoliberal a partir de janeiro de 2015, coisa que afastou as bases tradicionais de sustentação do governo, por exemplo.

O golpismo da mídia, a conspiração da Lava Jato, as tramas norte-americanas, o entreguismo de Temer e do PMDB, o inconformismo do PSDB, o ressentimento de grande parte da classe média, a avidez plurissecular da burguesia pelas benesses do Estado etc. explicam muita coisa, mas não tudo.

Então o golpe veio, com seu cortejo tétrico de menções às mães, famílias, cidades, invocadas naquele patético dia de abril de 2016 que inaugurou a nova noite em que o país mergulhava. Veio, viu e ganhou. Não fracassou, desejando as aves de rapina pelo governo federal, os cães pastores da extrema-direita pelas ruas. Nano fracassou, portanto. Ele veio para isto mesmo.

Mas naufragou. Ou se atolou em suas próprias contradições. Além de levar ao Palácio do Planalto uma chusma de acusados de todo tipo de crime lesa-pátria, a começar pelo de corrupção endêmica, as iniciativas econômicas do pseudo-governo são um desastre. Como, de resto, o ideário que as alimenta só provoca desastres pelo mundo inteiro, além de alimentar a extrema-direita.

O golpe é um naufrágio, rápido, seguro e de uma vez só. Sem gradualismo. A começar pela brigalhada entre seus próceres na mídia, no Judiciário, e na política. Não se entendem sobre o que fazer com Temer. Como sucede-lo? O que fazer com Aécio? Até mesmo sobre o que fazer com Meirelles e os desastres que provoca. O jeito é manter tudo no lugar e não olhar – nem pra trás, nem pro lado, nem pra frente. Não olhar. Fingir que não se vê o que se vê. É o que faz toda a cambada que apoiou o golpe, nas ruas, nas janelas com as panelas, na mídia, nos tribunais, no Parlamento, talvez até mesmo nas casernas.

Nas casernas? Talvez? Sim, porque este golpe teve um detalhe inovador. Nos golpes tradicionais, os civis golpistas açulavam e açulavam os militares. Estes, por fim, querendo “salvar” a disciplina, punham os tanques nas ruas. E saíam esbaforidos com suas lagartas rangendo pelo asfalto. Mas impunham um ritmo, uma disciplina, mesmo que carregada de repressão, torturas, assassinatos, como os decorrentes de 64 e 68. Os civis do golpe acertavam o passo e aceitavam a ordem unida.

Neste novo estilo neoliberal de golpe passou a prevalecer logo de cara a esculhambação. Faltou combinarem com militares, talvez porque naquele momento não houvesse a corporação por detrás. Ou parte dela, como em 1964.

Agora, enquanto se engalfinham, esperam que algo venha a “salvar” – não a pátria, não a economia, não a moralidade que mais que avacalharam – mas o próprio golpe. Seus candidatos a candidatos não têm luz própria. Bolsonaro, bem, Bolsonaro tem treva própria, é verdade. Mas a cena dele batendo continência à bandeira norte-americana pode promove-lo a líder da burguesia venezuelana, que costumava ir às manifestações anti-Chávez levando pequenas estátuas da Liberdade de Nova Iorque. Mas não o credencia muito para ser o líder da burguesia que alimenta os comentários econômicos da mídia mainstream do Brasil, mesmo que ela seja subserviente a Washington e seu consenso.

Hoje, a única coisa que une os golpistas é destruir o legado de um país que se concertava e consertava, e também a candidatura de Lula.

Conseguirão? A ver. Enquanto isto, vão esquartejando o país e cavando o próprio túmulo histórico. Haveria militares para salvá-los?

O golpe e seu governo se parecem cada vez mais com uma nau dos insensatos, à deriva

flavio aguiar política brasileira governo temer golpe golpe 16 golpe de 2016 autoritarismo regime militar moralismo jair bolsonaro

 

‘Fonte: rede Brasil Atual por Flávio Aguiar


Compartilhe este conteúdo: