Avanço ou casuísmo político? O dilema tenta atribuir sentido ao resultado do julgamento da Ação Penal 470, o processo do mensalão, que já condenou alguns dos seus principais réus na última semana, entre eles o ex-ministro chefe da Casa Civil, José Dirceu, e o ex-deputado José Genoíno, então presidente do Partido dos Trabalhadores (PT), em 2005, quando o escândalo veio à tona. Ambos tiveram a acusação de corrupção ativa acatada pela maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).

Fora o ambiente de polarização entre favoráveis e contrários às condenações, restou uma certeza. Para especialistas de diferentes visões entrevistados pelo Brasil de Fato, o STF modificou a interpretação vigente sobre crimes de corrupção ao julgar o caso envolvendo empresários e políticos ligados à base do governo Lula.

“O Supremo mudou sua orientação jurisprudencial, adotou uma teoria [jurídica] germânica e os critérios usados para examinar o mensalão não foram os mesmos utilizados no caso do ex-presidente Fernando Collor, nem nos processos que tratam dos escandalosos processos de privatização de empresas estatais na década de 1990”, exemplifica o jurista e professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP), Fábio Konder Comparato. Ele se refere ao mecanismo legal que exige comprovação material dos delitos de crime de corrupção.

Para o diretor-executivo da ONG Transparência Brasil, Claudio Weber Abramo, este aspecto foi uma inovação “bem-vinda” adotada pelo STF.

“Existe na Justiça brasileira uma tendência frequente de se exigir que se prove materialmente que o pagamento de dinheiro teve a ver com uma vantagem específica que aquele agente público concedeu a quem pagou. [Essa exigência] é um absurdo, porque a relação de causa e efeito não é apreensível e visível para ninguém, o que torna impossível provar uma coisa dessas”, avalia.

Abramo reconhece que a postura do Supremo segue uma direção bastante distinta da que tem pautado suas decisões sobre corrupção ao longo dos últimos anos. No caso do mensalão, explica, foi aplicada uma “racionalidade jurídica” inspirada na jurisprudência europeia e norte-americana, onde predomina o common law, um tipo de direito que se baseia em precedentes de casos anteriores ou, quando é uma interpretação nova, passa a influenciar decisões seguintes. “Nesses casos, os julgamentos são feitos com aquilo que se pode deduzir da materialidade dos indícios e não meramente uma interpretação gramatical da lei”, observa.

Tem que provar” – O professor de direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Pedro Abramovay, que foi secretário nacional de Justiça durante o segundo mandato do presidente Lula, afirma que não há teoria no direito penal que flexibilize a necessidade de se provar um crime. No caso do julgamento do mensalão, a condenação de réus como Dirceu e Genoíno se baseou na chamada teoria do domínio do fato, em que é possível atribuir ao réu a responsabilidade por um crime sobre o qual ele teria conhecimento e poder para impedir ou induzir sua ocorrência. “A teoria do domínio do fato é usada há muito tempo no direito brasileiro, portanto, não é nenhuma novidade.

O direito penal é estruturado para punir uma ação que causou dano ou lesão, como um homicídio, por exemplo. Com a ideia de que era preciso punir a criminalidade econômica, foi necessário reconstruir o direito e, no caso do crime de corrupção, a prova cabal pode ser a de que um agente público sabia e tinha o poder de impedir ou concorrer para que aquilo acontecesse. É preciso ter prova cabal sim, prova farta de que aquilo [corrupção] foi feito com o aval ou omissão do agente”, avalia.

Abramovay cita os votos de Joaquim Barbosa e Dias Tóffoli, em que a interpretação sobre a teoria do domínio do fato, aplicada a José Dirceu, resultou em decisões exatamente contrárias. “Foi por isso que Joaquim Barbosa se esforçou para citar reuniões, depoimentos e viagens na tentativa de provar o envolvimento de Dirceu no caso”, explica. Para Tóffoli, não havia nada nos autos que indicava sua responsabilidade. “A simples condição de chefe da Casa Civil, sem a demonstração de que tenha oferecido vantagem indevida, não conduz à imputação do ilícito”, diz um trecho do voto do ministro.

Para Claudio Weber Abramo, da ONG Transparência Brasil, a teoria do domínio do fato foi a parte mais imprecisa do julgamento, embora sufi ciente, segundo sua avaliação. “Digamos que alguma coisa acontece sob a responsabilidade de alguém e que, ingenuamente, o sujeito não saiba. Não importa, ele deveria saber. Havia indícios de que as decisões a respeito de pagamentos eram tomadas por José Dirceu, que ele seria o chefe de fato do partido. Mesmo se ele não soubesse, deveria saber”, pontua.

Abramovay discorda desse tipo de interpretação. Para ele, ou se admite as provas como sendo consistentes ou, do contrário, o domínio do fato não se sustentaria juridicamente. “Não significa que a teoria admite menos provas. Quem acha que as provas eram frágeis, mas, mesmo assim, autorizam a condenar, não está fazendo bom uso da teoria do domínio do fato”, esclarece.

Fonte: Pedro Rafael Ferreira, Brasil de Fato.

 


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