Convivemos com a desigualdade entre negros e brancos e muitos pensam que é fruto somente de um problema social, não do preconceito. Isso legitima que o preconceito se mostre em nosso cotidiano. A teoria da igualdade racial em nosso país é desmentida por casos de racismo que ocorrem todos os dias. O nosso racismo é institucional, alimentado diariamente por estereótipos, gracejos e piadas preconceituosas, é uma herança escravocrata que determina qual é o lugar do preto.

Nos últimos meses, o racismo tem se manifestado, por exemplo, no futebol, a paixão nacional. Mesmo existindo vários jogadores negros que jogam muito bem e trazem vitórias ao seu time e à seleção brasileira, não é incomum ver casos de racismo dentro e fora de campo. Foi o que aconteceu em casos recentes como os jogadores Tinga do Cruzeiro, Arouca do Santos, e o árbitro da Federação Gaúcha de Futebol Márcio Chagas da Silva.

Fora de campo, ao invés de reconhecimento do crime e apoio aos profissionais do futebol, tivemos a triste notícia de que Luis Felipe Scolari, técnico da seleção brasileira de futebol, argumentou que o melhor caminho é ignorar as pessoas que praticam atos preconceituosos no esporte, pois, se ninguém ligar, as pessoas esquecem.

Mas não é só no futebol que atitudes racistas têm sido evidenciadas. Em fevereiro, dois casos em Brasília chamaram a atenção. No primeiro, uma cobradora foi chamada de negra ordinária e preta safada por uma passageira que até agora não foi identificada. No segundo, uma australiana cometeu crime de racismo contra uma manicure em um salão de beleza. Ela chegou a ser presa, mas foi solta logo depois.

No Rio de Janeiro, o ator Vinícius Romão de Souza foi erroneamente reconhecido por uma vítima de roubo e foi preso. O ator chegou a ficar 16 dias na Casa de Detenção Patrícia Acioli, em São Gonçalo, e só foi solto depois de campanhas nas redes sociais e a retirada da queixa por parte da vítima.

Durante o carnaval na Bahia foram registradas 765 denúncias de discriminação racial na cidade que é considerada a mais negra fora do continente africano.

A discriminação de pretos e pardos, para muitos uma queixa já ultrapassada, está arraigada em nosso comportamento e perpassa as esferas pública e privada, do aspecto mais social ao mais íntimo de cada um de nós. Nosso racismo se ampara no ideal do branqueamento, que guiou a miscigenação brasileira. Somos muito menos a democracia racial, concebida por Gilberto Freyre, e muito mais a demagogia racista, que presenciamos no cotidiano.

Segundo uma recente pesquisa do IPEA, o negro é duplamente discriminado no Brasil, por sua situação socioeconômica e pela cor de pele. Isso explicaria a maior ocorrência de homicídios de negros em relação ao resto da população, em uma proporção de 2,4 para cada branco e índio. A taxa de assassinatos de negros no Brasil é de 36 mortes por 100 mil negros – entre não negros, esta taxa é de 15,2. Os baixos níveis educacionais deixam a população negra entre os mais pobres do país, enquanto 64,42% dos não negros estão entre os 50% mais ricos do Brasil, a maior parte dos negros (55,28%) está entre os 50% mais pobres.

Outro estudo, realizado pelo Instituto Sou da Paz, de São Paulo, corrobora os resultados do fosso racial. Enquanto acidentes de trânsito são as principais causas da morte não natural de brancos, negros morrem mais por homicídios. Além disso, duas de cada três mortes em decorrência de confrontos com policiais são de negros. Na prática, isso significa uma taxa de 2,3 vítimas negras para cada 100 mil, contra 0,6 brancos por 100 mil no mesmo tipo de ocorrência.

Um terceiro estudo, do pesquisador Ivair Augusto Alves dos Santos, revela o aumento de casos de discriminação e expõe relatos de vítimas de preconceito. Este trabalho converteu-se em obra literária e será utilizado na formação de policiais civis de São Paulo. Ele identificou, entre 2000 e 2007, 12 mil casos de discriminação registrados em sentenças judiciais, despachos, pareceres e inquéritos policiais coletados em Tribunais de Justiça de todo o país e revelou que por parte do Poder Judiciário, Ministério Público e delegados, a tendência é desqualificar determinadas atitudes como não sendo crime de racismo, transformando-as em injúria.

Destaca-se também que o Brasil possui a 4ª maior população carcerária do mundo, com quase 515 mil pessoas, sendo que mais de 134 mil presos têm de 18 a 24 anos. Os negros representam 275 mil, quase 60% do total, de acordo com o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), o que pode indicar que a justiça no Brasil é setiva.

Racismo no trabalho

O mercado de trabalho brasileiro expressa, entre outros aspectos, o resultado do processo histórico que conformou esta sociedade. Nele persistem situações discriminatórias sobre segmentos específicos da população, dentre os quais os negros têm lugar destacado, apesar das transformações ocorridas em direção a uma maior democratização social.

O negro tem salário menor por possuir menos escolaridade. Esse é um mito que por muito tempo tentou encobrir o preconceito existente nas empresas. Recente estudo do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) mostra que quanto maior a escolaridade, maior é a diferença salarial entre negros e não negros.

O estudo Os Negros no Trabalho comprovou que, entre 2011 e 2012, com o aumento dos anos de estudo, cresce a diferença salarial entre negros e não negros. Na indústria de transformação, a desigualdade de rendimento por hora entre negros e brancos era de 18,4% no ensino fundamental incompleto e 40,1% para as pessoas com ensino superior completo.

Já no setor do comércio, os índices ficaram em 19,7% para os que não completaram o fundamental e 39,1% para aqueles com diploma universitário. Na construção civil, onde a presença de negros é muito maior do que a de brancos, a diferença salarial registrada foi de 15,6% sem fundamental completo e 24,4% para quem já saiu da universidade.

Também ficou comprovado que os trabalhadores negros têm menos escolaridade. Entre 2011 e 2012, 27,3% entre os negros ocupados não tinham ensino fundamental completo e somente 11,8% contavam com diploma universitário. Já na parcela dos não negros, os índices eram 17,8% e 23,4% respectivamente.

Outro dado fundamental refere-se à diferença salarial entre negros e brancos. Já entre as sete regiões metropolitanas pesquisadas, Salvador com a maior população negra do país, apresentou a maior diferença, os negros recebem 40,14% a menos do que os brancos, seguida por São Paulo com 38,95% e em último lugar vem Fortaleza, onde os negros ganham 24,34% a menos.

De acordo com a pesquisa, o negro brasileiro ganha salário 36,11% menor do que os brancos no país. Os negros ainda tem maior instabilidade no trabalho e buscam emprego por mais tempo que os brancos, além de ocupar postos de trabalho mais precários e vulneráveis. É mais comum ver o negro no chão de fábrica ou em postos de trabalho de base da produção e com uma jornada de trabalho maior do que os não negros.

As mulheres negras são duplamente vítimas de discriminação, por gênero e raça, e ocupam um lugar ainda mais precário no mercado de trabalho. O salário médio da trabalhadora negra continua sendo a metade do salário da trabalhadora branca. Mulheres negras têm um índice maior de desemprego em qualquer lugar do país. A taxa de desemprego das jovens negras chega a 25%. Uma entre quatro jovens está desempregada e estão em maior número nos empregos mais precários e informais, cerca de 71% contra 54% das mulheres brancas e 48% dos homens brancos. Os rendimentos das mulheres negras em comparação com os homens brancos nas mesmas faixas de escolaridade não ultrapassam os 53%.

A pesquisa do Dieese corrobora com a tese da inexistência de uma democracia racial. Mesmo com a Abolição, aos negros couberam os cargos de menor remuneração no mercado de trabalho. Os ex-escravos foram jogados à própria sorte, abandonados pelo Estado e isso se reflete nesta pesquisa, onde a questão racial interfere ao designar lugares para trabalhadores negros na estrutura produtiva, passíveis de serem traduzidos por situações de discriminação não determinadas pelos critérios objetivos da produção, que acarretam desvantagens aos afro-brasileiros.

Resposta institucional ao problema do racismo

Em dezembro de 2013, após uma visita de dez dias ao Brasil, o Grupo de Trabalho das Nações Unidas (ONU) sobre Afrodescendentes apontou um grande contraste entre a precariedade da situação dos negros e o elevado crescimento econômico do país. A comitiva esteve em cinco cidades, reuniu-se com autoridades e representantes da sociedade civil, visitou favelas e quilombos e confirmou que, entre negros e brancos, existem desigualdades de acesso à educação, à Justiça, à segurança e aos serviços públicos.

Também identificou a existência de racismo nas estruturas de poder, nos meios de comunicação e no setor privado. Reconheceu os esforços do governo para combater o racismo com a criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção de Igualdade Racial, a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial, adoção de cotas nas universidades, a instituição da lei 10639/3, que obriga o ensino da cultura afro-brasileira nas escolas e o projeto de lei sobre as cotas para negros no serviço público.

A Presidenta Dilma se mostrou muito comprometida com a causa e esta série de iniciativas vêm sendo adotadas pelo governo federal no sentido de deixar evidente para a sociedade brasileira que o racismo é repudiado pelo governo e que, portanto, também a sociedade deve se mobilizar para combatê-lo.

No bojo destas mudanças, há uma proposta de alteração da Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, conhecida como Lei Caó. Ela estabelece que o crime de racismo ocorre quando a discriminação é dirigida a um determinado grupo ou à coletividade e considera a conduta um crime inafiançável, com pena de até seis anos de prisão. Enquadram-se nessa modalidade ações como impedir a ascensão profissional de alguém com base na cor da pele, dificultar ou proibir o acesso a um estabelecimento comercial ou vetar o ingresso em determinados locais.

Com quase oito anos em tramitação no Congresso, a proposta pretende pôr fim ao preconceito nas relações de trabalho, aprimorando a legislação sobre crimes de preconceito (Lei 7.716, de 1989). Se aprovada, ela irá instituir uma nova lei contra o racismo e outros casos de preconceito, mais severa (PL 6418/05 e apensados). Também ficaria revogado o artigo 140 do Código Penal sobre injúria racial, cuja prática, diferentemente do crime de racismo, não é inafiançável e imprescritível e prevê pena de um a três anos de prisão e multa e é prescritível.

A ideia é que tanto a injúria quanto à apologia ao racismo passem a ser enquadradas como discriminação resultante de preconceito de raça, cor, religião, sexo, aparência, condição social, descendência, origem nacional ou étnica, idade ou condição de pessoa com deficiência. A pena é de reclusão de um a três anos, passível de acréscimo de um terço. A proposta estabelece ainda que o crime poderá ser julgado por júri popular, com o intuito de inibir este tipo de ação criminosa. Nos casos em que forem registradas lesões corporais, de qualquer gravidade, o juiz ou o júri podem definir penas, de um ano a 16 anos de reclusão. Se o agressor matar a vítima, poderá ser condenado, a pelo menos, 12 anos de reclusão, podendo chegar a 30 anos.

Esta mudança na lei é algo importante, mas o que é imprescindível é a mudança de postura nas instituições brasileiras. O sistema racial brasileiro faz com que Estado, muitas vezes, estimule práticas racistas, ao invés de coibi-las.. A falta de punição estimula os casos de racismo.

Por exemplo, se alguém for preso em flagrante por crime de racismo, não cabe fiança, pois o crime é imprescritível e inafiançável. Mas o juiz trata de outra maneira, concede fiança, abre outro tipo de ação penal. Não são raras as vezes em que o crime é tipificado como injúria qualificada por motivo racial. Outra parcela tem na recusa dos agentes policiais a causa da falta de registro.

Maior ainda é o número de vítimas desencorajadas a fazer o Boletim de Ocorrência, devido à humilhação a que são submetidas. Segundo a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), a maior parte dos casos de discriminação racial é tipificada pelo artigo 140 do Código Penal, como injúria.

Devido a todos estes problemas de racismo, a CUT criou a Secretaria Nacional de Combate ao Racismo para lutar pela igualdade nas relações de trabalho, assim como combater o racismo em todas as suas formas e esferas onde ocorre. Em nossa luta cotidiana, buscamos trabalhar com organizações do movimento negro, nas negociações coletivas, nos diálogos com suas bases e lideranças sindicais e em instâncias do governo para tornar realidade à igualdade racial no Brasil.

Se quisermos resolver um problema, temos que ter consciência dele. O racismo é crime e problema grave no coração e nas raízes do Brasil. E, como tal, precisa ser enfrentado por todos nós.

Maria Júlia Reis Nogueira
Secretária de Combate ao Racismo da CUT Nacional

Fonte: CUT
 


Compartilhe este conteúdo: