Marco Aurélio Weissheimer
Sul21

Os debates que vêm ocorrendo por conta da passagem dos 50 anos do golpe civil-militar de 1964 estão mostrando, entre outras coisas, que os temas da tortura e da violência do Estado transcendem o período da ditadura e são uma presença constante na história do Brasil. Fazer essa constatação não significa relativizar em nada os crimes cometidos pela ditadura e seus funcionários civis e militares. Talvez ajude a entender a dificuldade que ainda enfrentamos para lidar com esses temas.

No ato-homenagem realizado segunda-feira (31), no Salão de Atos da UFRGS, em Porto Alegre, Flavio Koutzii perguntou: “Como é possível que, até hoje, no Brasil, nenhum torturador tenha sido preso? Como é possível que nenhum responsável por essas atrocidades tenha conhecido a justiça?”

A pergunta pode ser estendida para os torturadores dos períodos pré-ditadura e do pós-ditadura. Quantos foram e/ou estão presos?

É verdade que as Forças Armadas e outros órgãos de segurança seguem exercendo um pesado lobby político contra o julgamento de torturadores e autores de outros crimes na ditadura. Essa pressão tem sido tão mais eficaz na medida em que uma boa parte da sociedade parece legitimar a prática da tortura, seja por omissão, seja por concordar que, dependendo do caso, é um método aceitável. O buraco de perversão e violência aí pode ser bem mais profundo.

Ao contrário do que ainda se apregoa na maioria dos livros escolares, a história do Brasil está profundamente marcada pela violência e pela tortura. Qual seria o impacto de, ao se ensinar a história do Brasil nas escolas fossem relatados os assassinatos e torturas cometidos contra milhões de indígenas, negros escravizados, camponeses e trabalhadores pobres de todas as cores?

Em seu livro “O Povo Brasileiro”, Darcy Ribeiro nos conta que, em 1500, os portugueses chegaram em uma terra que abrigava cerca de um milhão de índios, quase a mesma população de Portugal na época. As décadas que se seguiram a essa chegada, foram um período de muita guerra e morte. Os povos que aqui resistiram à chegada do invasor foram, progressivamente, massacrados e escravizados.

Por volta do século XVI, os negros chegaram ao território brasileiro. Chegaram contra sua vontade, trazidos acorrentados da costa ocidental africana. Os negros escravos foram incorporados à força a uma cultura e a uma nascente sociedade completamente estranha a eles. A maioria foi levada para o nordeste açucareiro e para áreas de mineração no centro do país. E submetida a terríveis condições de vida, onde o espancamento, a humilhação e a morte eram companhias diárias. Assim como já havia acontecido com os índios. Sobre essa confluência de escravidões, Darcy Ribeiro diz:

“Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos”.

Há dois massacres, portanto, que são fundadores do Brasil como nação e essas marcas de brutalidade e crueldade seguem presentes até hoje, não como uma característica biológica, mas como comportamento social reproduzido e mesmo estimulado pela impunidade. Essa é a verdadeira impunidade que segue reinando no Brasil, sendo atualizada e legitimada institucionalmente a cada geração. Esse processo de legitimação começa desde o topo da cadeia jurídica, desde a Corte Suprema do país, que segue mantendo os torturadores ao abrigo da Lei da Anistia.

No ato da UFRGS, a uruguaia Lilián Celiberti disse: “A impunidade é a perseguição e a destruição da memória”. Ao lermos o texto de Darcy Ribeiro sobre a formação do povo brasileiro e a longa trilha de sangue que a acompanha, os nexos entre a impunidade e o esquecimento ficam mais claros. Essas duas coisas sempre andaram juntas na história do Brasil. Quantos indígenas foram mortos no processo de colonização do Brasil? Qual é a situação atual dos descendentes desses povos? Quantos negros foram mortos no processo escravista? Qual é a situação atual de seus descendentes? Qual é o perfil social e racial da população carcerária brasileira? Quantos casos de tortura acontecem diariamente no Brasil com envolvimento de agentes do Estado?

Essas perguntas deveriam ser tema de pesquisa e ensino permanente nas nossas escolas e universidades, por uma razão muito simples: respondê-las é uma condição necessária para o fim da impunidade e do esquecimento. Respondê-las é, também, uma condição para enfrentar o tema da violência no Brasil. Mas, para respondê-las, a sociedade brasileira precisa ter a coragem de se olhar no espelho e olhar aquilo que é apontado por Darcy Ribeiro: “somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos”.

Parece que há algo de diferente acontecendo nos eventos associados à passagem dos 50 anos da ditadura. Uma dessas diferenças é a intensa participação de jovens, como se viu, de modo extraordinário, na atividade realizada segunda-feira à noite no Salão de Atos da UFRGS. O que de mais extraordinário ocorreu ali não foram exatamente os relatos sofridos e altivos dos que lutaram e sobreviveram à ditadura, mas sim o fato de que, naquele exato momento, estava acontecendo algo que detona a aliança entre esquecimento e impunidade: estava sendo construída, na prática, uma ponte entre gerações e a experiência da mais antiga estava sendo transmitida para as gerações mais novas. Há relatos de encontros similares por todo o país.

Parece haver um despertar provocado por necessidades urgentes do presente: uma delas é enfrentar a chaga da violência e da crueldade que segue arraigada na sociedade brasileira, apesar dos importantes avanços sociais dos últimos anos. E ela segue arraigada, porque é alimentada, diariamente, pelo grande capital e seus braços políticos e midiáticos, com esquecimento e impunidade.

O capital, como se sabe, não tem o menor interesse pela memória. A incorporação da luta por memória, verdade e justiça, na agenda das organizações sociais, políticas e da cidadania em geral pode representar uma mudança qualitativa no enfrentamento não só do problema da violência, mas da desigualdade social e da qualidade da nossa democracia.

Cada vez há mais pessoas, de diferentes gerações, compartilhando a mesma convicção: não haverá solução aceitável para os problemas políticos, econômicos e sociais brasileiros sem que conheçamos nossa história, sem que tracemos os mapas que ligam nosso passado e nosso presente e, principalmente, sem que tenhamos a coragem de olhar para a crueldade e a brutalidade que seguem presentes na sociedade e no Estado brasileiro e em seus poderes.

Fonte: Sul21


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