por Paulo Donizetti de Souza, da RBA

A carreira jornalística de Aloysio Biondi se confunde com a história do jornalismo econômico brasileiro. Pioneiro na especialidade, Biondi debruçava sobre números, resultados de empresas, indicadores sociais e políticas públicas. Explicava com base em fatos, e não em encomendas, tampouco em suposições, o que estava acontecendo no país – e antevia o que viria a acontecer. Nos anos 1990, foi um crítico quase solitário das políticas liberalizantes dos governos, então apoiados em peso pelos jornais. Não por acaso, as redações foram fechando-lhe as portas, apesar da experiência, da gana investigativa e da qualidade do texto. A documentação jornalística que produziu naquele período acabou reunida no livro O Brasil Privatizado, lançado pela primeira vez em 1999 pela Editora Perseu Abramo.

Fazendo contas, e não discursos, o livro mostra, entre outras mazelas, que o programa nacional de desestatizações do governo Fernando Henrique Cardoso gastou R$ 87,6 bilhões para preparar as estatais que seriam leiloadas ao setor privado, e obteve uma receita de R$ 85,2 bilhões com os leilões – isso em valores não atualizados, de 1998, quando dólar e real tinham situação de quase paridade. Mais do que com o prejuízo fiscal e os preços aviltantes, Aloysio Biondi não se conformava com o prejuízo estratégico, de o governo se desfazer de instrumentos de promoção do desenvolvimento interno e de fortalecimento do país ante o mundo globalizado.

Ele morreu em julho de 2000 e hoje ainda é lembrado – sobretudo diante da agenda política, policial e moral que tomou conta dos jornais, e da escassez de profissionais que discutam a relação da condução da economia com o futuro do país e com a vida das pessoas. Ao enxergar esse potencial elucidativo da obra de Biondi, e sua pertinência no ambiente de debates de projetos para o país, a Geração Editorial propôs aos familiares do jornalista uma reedição de O Brasil Privatizado. “Quem são os grandes expoentes nas novas gerações do jornalismo econômico que fazem a leitura dos significados das decisões do Banco Central, ou do FMI, que papel cumprem para a sociedade? Hoje a pauta se resume a comentar números (inflação, juros, câmbio, a Bolsa…) sem dar-lhes significado. Pensamento econômico é mais do que isso”, diz Antonio Biondi, 36 anos, filho do meio de Aloysio, que teve também Pedro, 38, e Bia, 35.

A reedição do livro e sua atualidade serão tema de um debate nesta segunda-feira (15), no auditório do Sindicato dos Engenheiros de São Paulo, promovido pela Geração e pelo Centro de Estudos de Mídia Barão de Itararé. Antonio será um dos integrantes da mesa, acompanhado dos jornalistas Janio de Freitas, colunista da Folha de S.Paulo, Amaury Ribeiro Jr., autor de A Privataria Tucana, e o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, professor da Unicamp. Como aperitivo, Antonio Biondi conversou com a RBA.

Qual o significado do relançamento desse livro agora, 15 anos depois de sua primeira edição?
Está consolidado no ambiente do jornalismo econômico um pensamento hegemônico. Acompanha-se mais o sobe e desce da Bolsa do que se discute política industrial. Por que o país passa por uma desindustrialização desde os anos 1990 e quais os caminhos para a recuperação? Como a indústria pode alcançar uma posição de respeito no mercado interno e no mundo? Quando você entra no campo das propostas encontra um vazio. Por isso a obra do Aloysio é atual. O país ainda tem sede de discutir as consequências das privatizações e o papel do Estado como indutor da economia e do desenvolvimento. Até para contribuir com o debate sobre correções de rota inclusive para o atual governo, caso ele continue. A leitura ou releitura de O Brasil Privatizado remete a origens de muitos problemas que ainda hoje enfrentamos.

Por exemplo?
A Petrobras, por exemplo, é uma prova da importância de se ter um empresa pública forte. De se buscar, sim, o lucro, mas os interesses dos acionistas não pode se sobrepor aos interesses do principal controlador, que é a sociedade. Se é bom para a sociedade que se controle o preço da gasolina para conter a inflação, ainda que parte dos acionistas se incomode, que se controle o preço, sem prejuízo da sustentabilidade da empresa. Se a Petrobras tem como compromisso investir em infraestrutura ou apoiar projetos sociais mais do que qualquer outra empresa privada, que o faça, que invista, que ajude o Brasil, e que a sociedade entenda esse papel. O mesmo raciocínio vale para os bancos públicos. E o valia para as áreas absurdamente estratégicas que foram privatizadas nos anos 1990.

Telefonia, mineração…
Sim. E nesses casos houve dois problemas gigantescos conduzindo o processo: a leitura do potencial de crescimento que se reservava tanto para o Sistema Telebras quando para a Vale do Rio Doce foi desprezada nos editais de privatização e os preços de venda foram aviltantes. A Vale fatura hoje por ano 30 vezes mais do que os R$ 3 bilhões com que foi arrematada. O edital da privatização não levou em conta as previsões do mercado, nem de geólogos, nem de outros especialistas sobre o que a Vale estaria por desfrutar nos próximos anos. Não se levou em conta o potencial de crescimento, do preço e da importância do setor siderúrgico no mundo na década seguinte. Na telefonia a mesma coisa. O edital discutia o desafio de instalar orelhões em cada esquina num momento em que o Brasil e o mundo caminhavam para ter um celular em cada bolso. Num momento em que o mundo já se conectava pela internet e que o formato e a velocidade da informação iriam passar por essa transformação toda. A Telebras já previa, antes de ser privatizada, a necessidade de investimentos em redes de fibra ótica para acolher esse futuro que batia à porta. A necessidade de ter linhas diretas de comunicação com os outros países sem ter de passar pelos Estados Unidos – não precisava esperar descobrir a espionagem do governo americano sobre nossas autoridades para concluir que aquilo não era bla-bla-blá. Era estratégia de desenvolvimento e de soberania. Qual empresa privada de telefonia vai garantir a universalização do acesso à banda larga onde não dá lucro? Nenhuma. É o Estado que vai ter de fazer isso. Ter um Estado forte, empresas públicas lucrativas, porém direcionadas a atender os interesses estratégicos do país e da sociedade não é nenhuma revolução socialista. É democratizar o capitalismo.

Mas não é tão utópico quanto?
De maneira alguma. Não é necessário ir muito longe. Em quantos países capitalistas desenvolvidos o Banco Central é independente do poder constituído pela força do voto? Isso é sonho do mercado financeiro, do mundo especulativo. Ter uma autoridade monetária subordinada às instituições de governo é uma proteção para o Estado democrático. O BC brasileiro, por exemplo, nem precisou ser independente para jogar o jogo do mercado lá atrás, há 15 anos, para admitir regras que facilitaram a remessa de dólares para paraísos fiscais por meio das contas CC-5 – e por tabela, a existência da famosa figura do “doleiro”, hoje tão presente no noticiário econômico-policial. Quem ganha com isso? Sonegadores, especuladores. Quando o Banco Marka quebrou (em janeiro de 1999), os investidores que durante anos vinham ganhando com os fundos especulativos baseados numa farsa cambial não assumiram coletivamente o prejuízo de R$ 1,7 bilhão. A pretexto de evitar um suposto risco sistêmico, o BC assumiu o prejuízo. É para isso que o mercado quer BC independente? Para não ser “intervencionista” e não atrapalhar o capital especulativo. Isso está na obra do Aloysio. O Banco Central e a Fazenda tinham de atuar em nome dos interesses do nosso povo, da nossa economia, do nosso país. Isso é democrático. Transparência na Bolsa de Valores, gestão eficiente do mercado de capitais para estimular as pessoas a participar do impulso às empresas como forma de poupança, e com punição a quem especula com informação privilegiada, é democratizar o capitalismo. É desprivatizar o Estado.

E essa discussão não envelheceu?
Olha, a gente vem preservando e difundindo o patrimônio de informação sobre economia proporcionado pelo Aloysio no site http://www.aloysiobiondi.com.br. O acervo foi doado ao projeto Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulalio, ligado ao Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. E fomos procurados pela Geração Editorial com esse argumento: esse livro tem tudo a ver com o debate de projetos que está em curso nesta eleição. É uma discussão atualíssima. O livro ajuda a entender desde o Pastor Everaldo, que apregoa o Estado zero, até os programas do PSDB e do PSB, que privilegiam os interesses do mercado financeiro, passando por questões em que os governos petistas deixaram a desejar nos últimos anos, apesar dos avanços. A imprensa brasileira promoveu um vazio nesse campo. E a gente tem esse vazio muito presente. Aquela moçada que foi para a rua no ano passado, uma parte “contra tudo isso que está aí”, e uma parte com causas muito justas e objetivas, tem consciência de que existem “agentes econômicos” agindo diariamente, e nem sempre a favor do futuro do país? Tem ideia de que não existe “mágica” em economia real? Tem noção do potencial de empresas públicas fortes, sólidas e regidas sob um ambiente verdadeiramente democrático – isto é, sob controle social, e não do mercado – e daí a importância de se ampliarem os mecanismos de participação social? Minha geração até conseguiu debater um pouco isso, mas de uns 15 anos para cá esse debate real sumiu dos jornais. Então, é isso: o livro pode ajudar muito essa juventude que está interessada em compreender o país. Entender o que se passou lá atrás, e entender o que pode acontecer lá na frente.

Fonte: RBA


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