A reportagem, entre as que eu li, que mais “coloca-o-dedo-na-ferida” em relação à hipótese de abertura de capital da Caixa, lançando ações no mercado primário e/ou vendendo parte de 100% das ações hoje detidas pelo Tesouro Nacional (ainda não foi definido), é a de Fernando Torres (Valor, 05/01/15).
A questão-chave, seja vista como ideológica, seja vista como jurídica, a meu ver é: cabe extrair lucro privado, diretamente, de dinheiro público?

Torres argumenta que, “antes de a União pensar na abertura de capital da Caixa Econômica Federal, precisa separar:
1. a atividade bancária propriamente comercial, e
2. as ações de governo promovidas por meio da instituição.

Mas o risco real nesse caso é descobrir que, com as taxas reduzidas que cobra em empréstimos e serviços, a Caixa não dá lucro como banco. Só quando age no papel de agente do governo.”

FNC: É muito difícil separar, precisamente, as “ações de Robin Hood” da Caixa: transferir ganhos com “os ricos” (ações comerciais) para subsidiar os pobres (ações sociais). Na realidade, muito do que ela ganha, aplicando dinheiro que é patrimônio dos trabalhadores (FGTS) ou dos que reividicam justiça (depósitos judiciais), é revertido para os necessitados de subsídios sociais para aquisição de Habitações de Interesse Social. Em outros termos, os ganhos em Tesouraria permitem o oferecimento de “produtos sociais” no ponto-de-equilíbrio, pagando todas as despesas e remunerando o controlador, porém sem a maximização do lucro como buscam sempre os bancos comerciais privados.

GRÁFICO 1

Obs.: observem, no gráfico acima, que um grande diferencial entre bancos públicos e privados está na compensação porRendas de Administração de Fundos Sociais (FGTS, FAT, FCO, FNE, FINOR, etc.), Programas Sociais e Loterias(barra roxa: R$ 6,4 bilhões em junho de 2013) e Rendas de Serviços de Arrecadações e Convênios (barra verde escuro: R$ 3,1 bilhões em junho de 2013), para os bancos públicos, suas menores Rendas de Tarifas Bancárias, Rendas de Cartão de Crédito e Rendas de Administração de Fundos de Investimentos.

Torres afirma que, “nos primeiros nove meses de 2014, a Caixa Econômica teve lucro de R$ 4,8 bilhões antes do pagamento de Imposto de Renda e CSLL. Mas esse resultado se explica essencialmente por Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), depósitos judiciais e loterias, e não pela atividade de concessão de crédito e prestação de serviços tradicional.

GRÁFICO 2

Para cuidar com exclusividade do FGTS, que tinha em outubro R$ 400 bilhões em ativos, a Caixa cobra 1% de taxa de administração dos trabalhadores e com isso ganhou ao longo de 2014 até setembro R$ 2,89 bilhões. Descontados os custos reportados de R$ 373 milhões, o lucro com a operação do fundo fica em R$ 2,51 bilhões.

Já a captação da Caixa por meio de depósitos judiciais teve saldo médio de R$ 47,3 bilhões neste ano, com custo contabilizado de 4,11% no ano até setembro, ante um CDI acumulado de 7,83% no mesmo período. A economia proporcionada por meio do funding mais barato foi de R$ 1,76 bilhão.

Só com esses dois fatores já se chega a um ganho de R$ 4,28 bilhões, suficiente para assegurar quase 90% do lucro antes de impostos obtido pela Caixa nos primeiros nove meses de 2014.

A análise do resultado com loterias é mais difícil, já que a Caixa aglutinou parte das despesas com lotéricas a partir de 2013 dentro da linha de gastos com “parceiros comerciais”, o que impede uma precisão no cálculo. A receita com casas lotéricas apontada no balanço foi de R$ 900 milhões de janeiro a setembro, enquanto o custo diretamente alocável pode ser estimado em cerca de R$ 300 milhões, com base na abertura de dados que era feita até o exercício de 2012, o que dá um resultado positivo de mais R$ 600 milhões.

Ainda que uma parte relevante da linha de despesas com “parceiros comerciais”, no valor de R$ 1,58 bilhão, deva ter relação com as lotéricas, a Caixa tampouco discrimina as receitas de serviços e com operações de crédito que consegue capturar pelo fato de possuir as loterias como rede de distribuição, o que pode equilibrar a conta.”

FNC: Neste ponto, Torres lança “a questão filosófica“, aquela que o Governo terá de ter sabedoria para decidir, antes de tratar a abertura de capital como uma questão meramente fiscal: se ela é apropriada sob o ponto-de-vista da ética pública.

Todas os seguintes procedimentos já poderiam ser questionáveis, sob o ponto-de-vista ético, mesmo quando o lucro, no fim das contas, fica todo com o governo, que tem 100% do capital da Caixa:
1. a cobrança de uma taxa proporcionalmente elevada para administrar o dinheiro dos trabalhadores no FGTS,
2. a perda imposta pelos depósitos judiciais a quem reclama na Justiça e
3. a obtenção de lucro com jogos de azar.

Mas daí surgem novos questionamentos:
• Por um lado, como lidar com esses pontos se o banco for transformado em sociedade de economia mista e tiver acionistas privados?
• Por outro lado, quem vai querer ser sócio da Caixa se essas atividades saírem do banco (ou ficarem menos rentáveis) e ela não der mais lucro?

Além disso, Torres fala do “risco já apontado pelo crescimento acelerado da carteira de crédito do banco, nos últimos anos, que já apresenta os primeiros sinais de deterioração, com:
1. reclassificações de rating,
2. aumento de renegociações, e
3. venda de carteira podre.””

FNC: Desconfio que isso é pura desconfiança preconceituosa lançada por agentes interessados de O Mercado. Portanto, trata-se de uma desconfiança mútua…

“Outro ponto relevante do modelo atual da Caixa — que se for mantido favoreceria os acionistas privados — tem relação com a estrutura de capital da instituição, que tem pouco mais de metade do patrimônio líquido (55%) formada por instrumentos híbridos que rendem TJLP ao governo.

Quando se observa o resultado da Caixa, nos últimos 12 meses até setembro, e se faz um cálculo de retorno sobre o patrimônio líquido médio, a rentabilidade fica em 12,6% (o cálculo considera lucro e remuneração de híbridos no numerador e capital próprio e híbridos no denominador). É um nível baixo para um banco privado, mas aceitável para um estatal.”

FNC: Essa informação se choca com a anteriormente fornecida pelo mesmo jornal (Alex Ribeiro – Valor, 23/12/14): “A Caixa obteve um retorno sobre o patrimônio líquido de 17,8% no terceiro trimestre, não muito inferior aos concorrentes privados”. Parece-me falho esse cálculo de rentabilidade patrimonial considerando os IHDC (Instrumentos Híbridos de Capital e Dívida). Eles são representados por diversos tipos de títulos de dívida ou contratos para captação de recursos financeiros para capitalização da instituição financeira, que devem ser contabilizados no Patrimônio Líquido, porque fazem parte do PR (Patrimônio de Referência). O BCB permite que os IHDC sejam capazes de aumentar o grau de capitalização e, consequentemente, os níveis de alavancagem da instituição financeira.

Torres argumenta que “ocorre que, no modelo atual, a parcela do patrimônio pertencente aos detentores de títulos híbridos (leia-se o Tesouro Nacional) foi remunerada por TJLP, a 5% ao ano, enquanto o “capital dos acionistas” (de novo o Tesouro Nacional) recebeu 23%.

Como atualmente o Tesouro é o único nas duas pontas, essa discrepância entre risco e retorno não é um problema.
Mas em um cenário em que acionistas privados tenham direito a uma parte do lucro da Caixa, cabe a pergunta se faz sentido a União subsidiá-los, ao aceitar um retorno abaixo do que seria razoável no mercado nos títulos híbridos.”

FNC: Pouco antes de eu sair da Caixa, minha equipe e eu construímos junto ao Tesouro Nacional uma engenharia financeira inédita via “empréstimos perpétuos” do controlador para a controlada. Ele concederia empréstimo perpétuo, que jamais se amortizaria, mas que seria remunerado com o pagamento dos mesmos juros de títulos de dívida pública no maior prazo então lançado. A Caixa compraria esses títulos com o valor do empréstimo recebido, para fazer hedge desse pagamento de juros: o que receberia com uma mão, pagaria com a outra. Seria, então, um “jogo de ganha-ganha contábil prá inglês ver“: O Mercado veria que a Caixa é um banco de risco soberano, pois é controlada pelo Tesouro Nacional, que jamais quebra!

PS: Enquanto isso, verifica-se que já não se faz VP como antigamente, lá pelos idos de 2003-2007…
“Para sustentar um crescimento no crédito acima da média dos demais bancos, a Caixa Econômica Federal vem pagando mais caro do que os concorrentes para captar recursos por meio de Letras de Crédito Imobiliário (LCI), segundo apurou o Valor (05/01/15).

De acordo com relatos de executivos de bancos e de gestores de recursos, a remuneração oferecida pelo banco público chega a alcançar 97% do CDI ao ano, enquanto as demais instituições de grande porte pagam abaixo de 90% do CDI, o juro do interbancário.

Criadas em 2004 [Por quem, hein? Hein? 🙂 ] com o objetivo de fomentar a habitação, as LCIs são títulos isentos do pagamento de Imposto de Renda para pessoas físicas. Justamente por essa característica, os bancos emissores acabam pagando uma taxa aos investidores mais baixa do que aquela que oferecem nos Certificados de Depósito Bancário (CDBs). A remuneração paga somada ao efeito da isenção do IR resulta num retorno para o investidor, em geral, superior ao do CDB.

Ao arcar com uma remuneração mais alta do que os concorrentes para obter funding via LCI, a Caixa pode prejudicar a rentabilidade dos empréstimos.”

Fonte: Blog Cidadania & Cultura

* Fernando Nogueira da Costa possui Graduação em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais (1974), mestrado em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas (1975), doutorado em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas (1985), Livre Docente pelo Instituto de Economia da UNICAMP (1994). Professor da UNICAMP desde 1985. Experiência profissional na área de Macroeconomia, com ênfase em Teoria Monetária e Financeira, pesquisando principalmente nos seguintes temas: Sistema Financeiro, Bancos, Teoria e Política Monetária, Inflação, Finanças Comportamentais.
 

 


Compartilhe este conteúdo: