Por Tiago Muniz Cavalcanti, especial para o Blog do Sakamoto

A rejeição e o menosprezo às leis trabalhistas pelos setores mais conservadores e elitistas da sociedade respingam não apenas no Direito do Trabalho mas também nas instituições. A Justiça do Trabalho tem sido desacreditada e constante alvo da indelicadeza e da falta de polidez dos parlamentares, que a acusam de proferir “decisões irresponsáveis” e que, por isso, “não deveria nem existir”.

A tentativa de devastar inteiramente o aparato jurídico-normativo trabalhista e tudo o que lhe circunda e resguarda tem seu ápice na Reforma Trabalhista (projeto de lei nº 6787/2016), que recentemente recebeu parecer substitutivo do relator, o deputado Rogério Marinho (PSDB-RN).

A proposta, que altera sensivelmente a CLT, modificando a essência protecionista que lhe é característica, está permeada de mentiras e maldades. Esta análise, longe de esgotá-las, vai se concentrar nas principais e mais significativas mudanças e seus fundamentos.

Iniciemos pelas inverdades, que não são poucas.

Trabalhador não foi consultado – Ao contrário do que sugere o parecer, a proposta de Reforma Trabalhista não garantiu uma “ampla discussão democrática da matéria”. O projeto, na verdade, padece de amparo popular, pois foi elaborado à míngua de debates e discussões sociais, sem que os interessados participassem ativamente da sua construção. Além de não resistir a uma conversa ampliada e destemida, a proposta é rejeitada pela maioria esmagadora das entidades de representação profissional.

Tampouco é verdade que a legislação trabalhista esteja presa às “amarras do passado”. Apesar de nascida em 1943, a Consolidação das Leis do Trabalho teve mais de 85% dos seus dispositivos alterados de lá para cá, sem falar das muitas leis esparsas, cronologicamente mais recentes, que igualmente se prestam a regular as relações de trabalho. Se é necessário modernizar a legislação trabalhista, que seja para estender a teia protetiva do Direito do Trabalho às novas formas e modalidades de exploração da mão de obra, até então inimagináveis – tais como a denominada uberização das relações de trabalho. Ou seja, é necessário mais proteção e não menos.

Entretanto, essa ampliação protetiva passa longe do projeto: na forma como está posto, apenas corrói, destrói e precariza o que há de bom.

 

De acordo com o relator, a “legislação trabalhista brasileira vigente hoje é um instrumento de exclusão”, sendo imprescindível uma “modernização” para “gerar mais empregos formais e para movimentar a economia”.

Esquece Sua Excelência que as relações individuais de trabalho em nosso país gozam são características de países periféricos. Por exemplo, com redutibilidade salarial por negociação coletiva, compensação da jornada de trabalho e possibilidade de encerramento unilateral do contrato de trabalho, não sendo verdade que a lei trabalhista seja rígida e dificulte investimentos.

Reforma não reduzirá desemprego – A redução dos custos da produção por meio da flexibilização da lei trabalhista não levará à diminuição do índice de desemprego, mas tão só ao encolhimento da renda e à redução da capacidade aquisitiva dos consumidores. É exatamente neste sentido o resultado do estudo promovido pela Organização Internacional do Trabalho em 63 países desenvolvidos e em desenvolvimento.

Também não é verdade que o projeto “não está focado na supressão de direitos”, pois este “não é e nunca foi” o seu objetivo. Balela. Além de relativizar e flexibilizar, direta e indiretamente, a legislação trabalhista, a proposta simplesmente suprime direitos atualmente previstos no texto da CLT, como o faz, por exemplo, com as horas in itineres – horas extras pagas pelo tempo de deslocamento até o local de trabalho quando não há transporte público disponível no trajeto.

A afirmação de que a prevalência do negociado sobre o legislado, prevista no projeto, não comprometerá os direitos assegurados aos trabalhadores afasta-se da realidade. Ora, a livre negociação entre partes desiguais desvela uma verdade secular: disputas entre Davi e Golias tendem a produzir resultados opostos ao do milagre bíblico. Se o Direito do Trabalho surgiu para intervir na manifestação de vontade das partes e balizar o contrato de trabalho, a ausência estatal conduzirá, inevitavelmente, a um passado marcado pela desregulação, desproteção e precarização.

Assim, com base nas inverdades, propõe-se um pacote de maldades.

Riscos do negócio ficarão com o trabalhador – O projeto chama à atenção pela lógica que o permeia: a transferência dos riscos da atividade econômica para o trabalhador de modo a isentar o empregador da responsabilidade inerente ao seu negócio.

A proposta inserida no artigo 2º da CLT é uma amputação do grupo econômico trabalhista, uma figura cuja finalidade é a garantia do pagamento do crédito ao trabalhador por qualquer das empresas favorecidas pelo contrato de trabalho.

O parecer substitutivo dilacera a responsabilização decorrente do grupo econômico trabalhista ao afastar a caracterização pela “mera identidade de sócios, ainda que administradores ou detentores da maioria do capital social, se não comprovado o efetivo controle de uma empresa sobre as demais”. Ou seja, isenta de responsabilidade todas as empresas que, possuindo identidade societária e gerencial, se beneficiaram da prestação dos serviços do trabalhador.

Esse projeto também veda a responsabilização em cadeia. Se a experiência externa avança na responsabilização vertical a exemplo da Recomendação da OIT Sobre as Medidas Complementares para a Efetiva Supressão do Trabalho Forçado (2014) e das leis California Transparency in Supply Chains Act (Estados Unidos, 2010) e Modern Slavery Act (Reino Unido, 2015), que exigem que empresas com faturamento elevado devem tornar pública sua relação com os demais atores da sua cadeia produtiva, por aqui as coisas parecem tomar rumo distinto.

Empregado terá dificuldade na Justiça do Trabalho –  A proposta afasta “a responsabilidade solidária ou subsidiária de débitos e multas trabalhistas” quando “empregadores da mesma cadeia produtiva” estabelecem negócio jurídico “ainda que em regime de exclusividade”. A depender da nova redação, portanto, a Justiça do Trabalho ficará impedida de responsabilizar as grifes que delegam sua produção a pequenas oficinas de costura e se beneficiam do trabalho escravo de migrantes vulneráveis, precarizados e indocumentados.

Além disso, a proposta cria a figura do trabalhador que presta serviços com exclusividade e de forma contínua sem, no entanto, perder sua condição de autônomo. Em outras palavras, é conivente com a fraude por alijar da proteção do vínculo de emprego o trabalhador não eventual, economicamente dependente do tomador dos serviços, de quem recebe as diretrizes para a execução do trabalho.

A verdadeira autonomia, no entanto, exige independência do trabalhador em relação às ordens do tomador dos serviços, sendo, pois, incompatível com a subordinação inerente à exclusividade. O autônomo genuíno executa as atividades por conta própria, possui independência econômica em relação ao tomador dos seus serviços e, regra geral, o faz de forma descontínua, sem a característica da habitualidade.

Empregado à disposição a qualquer hora do dia – Não menos grave é a nova espécie de contrato de trabalho preconizado pela proposta: o contrato intermitente, uma modalidade na qual o trabalhador não dispõe de horário fixo, não possui carga de trabalho previamente estabelecida e não conta, sequer, com salário certo ao final do mês. Cria-se a figura do trabalhador ultraflexível, disponível a qualquer hora do dia, da noite, da semana, do ano, podendo alternar períodos de prestação de serviços e de inatividade à mercê da necessidade do patrão.

Limite de indenização até para morte – A tentativa de livrar o bolso do empregador tem seu ápice na pretensa regulamentação do dano extrapatrimonial. A nova regra, se aprovada, limita o valor da indenização a 50 vezes o último salário contratual do ofendido, ainda que se trate de ofensa de natureza grave.

A proposta é exdrúxula por vários aspectos: tarifa rigidamente o dano; amarra as mãos do juízo no arbitramento da indenização devida, algo que não ocorre em nenhum outro campo do direito público ou privado; ao determinar como parâmetro o salário contratual para a fixação da indenização, o legislador estabelece que a moral do rico vale mais do que a do pobre. E sobretudo, porque os valores, de tão desprezíveis, não servem à finalidade mais notável do instrumento: a reparação do mal causado.

Tomando-se como parâmetro o atual salário mínimo nacionalmente unificado, no valor de R$ 937,00, o teto indenizatório será de R$ 46.850,00, uma mixaria para grandes empresas. Isso apenas demonstra o desprezo do legislador com o sentimento de dor, angústia e tristeza do trabalhador que teve atingida sua dignidade por meio da violação de seus direitos da personalidade.

Danos graves, como morte, amputação, desfiguração, escravidão ou perda da visão e da audição, ensejarão o pagamento máximo de R$ 46.850,00, independentemente da capacidade econômica do empregador ofensor, ainda que se trate de instituições financeiras com lucro líquido anual na casa das dezenas de bilhões de reais.

Para efeito de comparação, o sambista Zeca Pagodinho recebeu R$ 56.000,00 da companhia aérea Aerolineas Argentinas por ter se sentido desrespeitado em uma viagem que realizou com a família em 2008 para Bariloche. Para o legislador trabalhista, a vida e a integridade física e psíquica do trabalhador valem menos do que o desconforto decorrente de uma relação de consumo qualquer.

É indubitável que o teto de indenização não atenderá às características punitiva e pedagógica desse instrumento, cuja finalidade é tangenciar o ofensor à correção e à não repetição da conduta ilícita.

Mais trabalho escravo – Como a ideia é livrar a barra do patrão, nada melhor do que terceirizar. Então, a proposta estende vastamente e sem limites a terceirização, confirmando a prestação de serviços por intermédio de terceiros em qualquer atividade, inclusive na principal. Um paradoxo se pensarmos que a terceirização tem como justificativa possibilitar ao tomador se preocupar apenas com as atividades que constituem o objetivo central do seu empreendimento.

Não se pode perder de vista que a lógica primária da terceirização de serviços viabiliza a concepção do trabalho humano como mercadoria, colidindo com os preceitos que asseguram o trabalho decente. Estudos demonstram que essa técnica de gestão empresarial tem trazido consequências antissociais para os trabalhadores, tais como: a perda do salário e demais benefícios profissionais da categoria predominante, por não lhes ser aplicável o instrumento coletivo referente à atividade preponderante do tomador dos serviços. Ou a inexistência de organização sindical efetiva e representativa. Isso sem contar a discriminação em relação aos empregados contratados diretamente pelo tomador, a instabilidade no emprego e a alta rotatividade de mão de obra.

Não por acaso, registre-se, a cada dez trabalhadores resgatados de condições análogas à de escravo no país, nove são terceirizados.

Menos segurança no trabalho – Igualmente grave será a prevalência do negociado sobre o legislado em relação à jornada de trabalho, ao intervalo para repouso e alimentação e ao enquadramento do grau de insalubridade, questões relacionadas à saúde, higiene e segurança do trabalho, que não deveriam ser passíveis de negociação.

E o mais interessante é notar que a proposta de acabar com a obrigatoriedade do imposto sindical poderá ser utilizada estrategicamente como barganha para acalmar os sindicatos e, com isso, viabilizar a aprovação do pacote de maldades.

Como se vê, a reforma trabalhista provocará uma verdadeira metamorfose na CLT. De Consolidação das Leis do Trabalho para Consolidação do Livre-comércio do Trabalho.

E é a partir desta nova realidade, que a compra e venda da força de trabalho será feita, como outrora, em praça pública e de acordo com a espessura das canelas.

(*) Tiago Muniz Cavalcanti é procurador do Trabalho e responsável pela Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo no Ministério Público do Trabalho.

 

 

 

Fonte: Blog do Sakamoto


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