Em um artigo publicado terça-feira (23), no jornal The New York Times, o economista Mark Weisbrot acusou o Poder Judiciário brasileiro de estar empurrando a democracia do país para o abismo. Weisbrot criticou a atuação do juiz Sérgio Moro no processo envolvendo o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e afirmou que a democracia brasileira passa por seu momento mais frágil desde a ditadura militar. O cenário nas imediações do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em Porto Alegre, na manhã desta quarta-feira (24), ilustrou a advertência de Weisbrot sobre a sombra do abismo que ronda a democracia brasileira.
De um lado, o acesso ao tribunal bloqueado por um aparato militar sem precedentes. Do outro, no anfiteatro Pôr do Sol, milhares de manifestantes, vigiados de perto pelo pelotão de choque da Brigada Militar. Na grade que separava manifestantes e o choque da Brigada, seguranças do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), garantiam que aquela linha não fosse ultrapassada. Muita gente se aproximava da grade querendo simplesmente ver onde era o prédio do tribunal onde Lula seria julgado.
Praticamente no mesmo horário em que o julgamento começava no TRF4, iniciava no acampamento instalado pelo MST e pela Via Campesina uma vigília para acompanhar o que acontecia a cerca de um quilômetro dali. Nas manifestações, uma afirmação se repetia: a mobilização que trouxe a Porto Alegre militantes de vários estados do País, não se esgota neste dia 24 de janeiro e no processo envolvendo Lula. A percepção de ruptura da democracia, dos pactos firmados na Constituição de 1988 e do próprio estado democrático de direito é muito presente nas falas e nas formulações acerca do futuro. Além do acompanhamento, a vigília teve também um caráter de júri popular onde quem estava no banco dos réus era o próprio Poder Judiciário brasileiro.
Fim de um ciclo político
Para o economista Marcio Pochmann, o julgamento de Lula é parte constitutiva de um movimento mais amplo associado ao fim do ciclo político da Nova República. “Tivemos a transição da ditadura para a democracia e esse período mais longevo se deu justamente a partir do reconhecimento do resultado das eleições pelos partidos que eram derrotados. Isso permitiu que o Brasil ganhasse um impulso importante, combinando nos governos dos anos 2000 a democracia, o crescimento econômico e a distribuição de renda”.
Esse julgamento, acrescenta Pochmann, faz parte de um processo que se inicia em 2014, quando a oposição derrotada não aceita o resultado eleitoral e praticamente provoca um terceiro turno que foi o impeachment. “Agora, é fundamental que se interrompa a possibilidade de qualquer alternativa a esse projeto liberal-conservador, impedindo que Lula possa vir a ser candidato às eleições deste ano”.
“Sistema judiciário do país não vai mais existir”
Roberta Coimbra, dirigente estadual do setor de gênero do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Rio Grande do Sul, destaca o impacto do processo de julgamento de Lula na percepção da esquerda e do povo em geral a respeito do Poder Judiciário brasileiro. “Apesar de o grande símbolo do dia de hoje ser a pessoa do Lula, a maioria do povo que está aqui está indignado com a situação da justiça no país. Se isso que estamos vendo é feito com pessoas que têm poder, imagina o que podem fazer com o resto da população. O que anima essa mobilização é esse cenário onde todo o sistema judiciário do nosso país simplesmente não vai mais existir, não vai mais significar justiça”. Isso ocorre, acrescenta, combinado com a naturalização de um esquema de corrupção no país.
Repetindo uma formulação feita por diversas lideranças políticas, sindicais e de movimentos sociais, Roberta Coimbra salientou que a mobilização organizada em Porto Alegre para acompanhar o julgamento de Lula não se limita à data de 24 de janeiro. “Essa mobilização não termina com o julgamento do Lula. Na verdade, estamos iniciando um processo de conscientização e de mobilização de todo mundo que se importa com justiça social, com garantia de direitos e com um Brasil melhor. Pretendemos tocar essa mobilização de forma crescente, não só no decorrer deste ano, até que a gente consiga fazer vigorar os nossos direitos, a lei e também fazer reformas para melhorar aquilo que já existe. Haverá muita mobilização em torno das eleições, mas não podemos nos preocupar só com a figura do Lula e com a eleição em si. Todos os direitos da classe trabalhadora até hoje foram conquistados na luta do povo organizado
“Se a gente esperar que macho, adulto e branco resolva essa situação, estamos lascados”
Instrumentista, cantor e compositor ligado à tradição da viola caipira, Chico Nogueira, avalia que, para vislumbrar o futuro pós-julgamento de Lula, é preciso entender o que vem antes do julgamento. “Para mim é claro que, há muito tempo, vinham costurando e preparando as bases para o golpe em curso no país. Este passo que eles estão dando agora, com o julgamento de Lula, simboliza muito claramente um rompimento das elites do país em relação a acordos que tinham sido feitos. Romperam as pontes e as possibilidades de diálogo. Essa agressão que cometem contra o Lula agora é mais um passo nesta direção”.
Por outro lado, assinala o compositor, essa situação é uma “oportunidade para reciclar e ressignificar os nossos movimentos”. “Eu sempre lembro o episódio da ocupação das escolas, no início do governo golpista. Cerca de mil escolas foram ocupadas no Brasil inteiro e a gente nem sabe direito o nome das pessoas que protagonizaram esse movimento. Os grupos de juventude dos partidos estão crescendo. É importante que as pessoas tenham consciência do que significa esse momento para o país, que expõe a extrema truculência e ignorância da nossa elite. Foi assim em 1964, foi assim quando eles destruíram Palmares, quando destruíram Canudos e em tantas outras situações. Isso aponta de modo muito claro os caminhos que precisamos seguir. Se a gente esperar que macho, adulto e branco resolva essa situação, estamos lascados. Precisamos nos orientar por aquilo que as mulheres negras, que estão no extremo da exploração, colocam como prioridade”.
“Tem vida depois do dia 24. Tem vida e tem luta”
Presidente da Central Única dos Trabalhadores no Rio Grande do Sul (CUT-RS), Claudir Nespolo lembra que toda a mobilização que se expressou em Porto Alegre nos últimos dias está diretamente ligada ao tema das reformas. “Nós continuaremos defendendo Lula colados no tema da resistência à Reforma da Previdência. No dia 19 de fevereiro, já temos todo um planejamento para fazermos uma greve geral no país. Se eles insistirem em manter a votação, a greve geral será contra a Reforma da Previdência e em defesa dos direitos de Lula. É assim que vamos trabalhar o resto do ano”.
O ato massivo realizado terça-feira na Esquina Democrático e o acampamento no anfiteatro Pôr do Sol são capítulos de um processo de mobilização de longo prazo, destaca ainda o dirigente da CUT. “Sempre trabalhamos com a ideia de que 24 de janeiro não é tudo. Tem vida depois do dia 24. Tem vida e tem luta. Essa grande unidade que estamos vendo aqui em Porto Alegre e que estamos aprimorando é a base para tocarmos as lutas do próximo período. Vamos enfrentar a pauta neoliberal encaminhada por Temer com muito mais vigor político e representatividade”.
“O estado democrático de direito não existe mais”
Ligado aos movimentos sociais do campo, o deputado federal Dionilso Marcon (PT-RS) destaca a vitalidade que a esquerda está mostrando para enfrentar a ofensiva conservadora em curso no país. “O que está acontecendo nestes dias em Porto Alegre e em todo o país mostra que a esquerda e o povo organizado tem a capacidade de produzir um movimento de ascenso de massas. O que já podemos dizer sobre o futuro é que continuaremos lutado pela democracia, pelo direito à eleição este ano. E a eleição sem Lula é roubo”. Neste cenário de futuro, Marcon também lembra a agenda de votações no Congresso Nacional: “Temos outra frente de luta em Brasília para que esse governo golpista não venda o Brasil e não sequestre os direitos do povo brasileiro. Em fevereiro e março, teremos a pauta da Reforma da Previdência que significa não deixar o povo se aposentar em vida”.
Para a deputada federal Jandira Feghali (PCdoB/RJ), um dos aspectos mais graves que cerca do julgamento de Lula é o fato dele ocorrer em um contexto onde o estado democrático de direito não existe mais, de fato, no país. “Se levarmos em conta a lei e o direito, Lula deveria ser absolvido. O problema é que não estamos em um estado democrático de direito e essa decisão ficou na mão de três homens togados que tiveram diante deles a opção de optar pelo Direito ou pelo ativismo político. Estamos há cerca de um quilômetro do TRF e é muito angustiante saber que o destino da democracia brasileira está na mão de três homens. Mas nós não vamos desistir, vamos radicalizar a democracia brasileira e fazer com que 2018 seja o ano da virada no país”.
Fonte: Sul 21/ Por Marco Weissheimer
Fotos: Marlei Ferreira/Seeb Caxias do Sul e Região; Joana Berwanger/Sul21(Claudir Nespolo); Guilherme Santos/Sul21 (Roberta Coimbra)