Como as big techs do norte global transformaram as informações das pessoas, dos governos, das universidades e empresas em ativos mais lucrativos que o petróleo

O poderio das big techs, sediadas no norte global, reproduz a lógica colonial de usurpação de bens e alienação. Como esta nova fase do capitalismo impacta a produção de conhecimento e o nosso cotidiano? E o que fazer para reduzir o controle dos monopólios que transformam nossa vida em dados?

Em 2017, a revista norte-americana The Economist estampou uma manchete emblemática: “Dados são o novo petróleo”. A metáfora, que parecia apenas mais uma boa sacada, inspirada na frase de um matemático britânico, traduziu com precisão uma nova fase do capitalismo no qual dados – os seus, os meus, os de governos, universidades, empresas – passaram a ser ativos mais lucrativos que o ouro negro.

Os fatos da reportagem eram incontestes: Alphabet (a holding dona do Google), AmazonAppleFacebook (agora Meta, também dona de Instagram e WhatsApp) e a Microsoft faturaram, juntas, 25 bilhões de dólares apenas nos primeiros quatro meses de 2017, o que simulava os ganhos da indústria do petróleo no início do século 20.

Como de praxe na revista, considerada porta-voz do “mercado”, essa nova fase do capitalismo era salutar – afinal, os serviços ofertados pelas big techs eram gratuitos, e não haveria problema em elas serem gigantes.

Porém, a análise da The Economist não resiste a um olhar mais crítico. A hipertrofia dos titãs da tecnologia já era, sim, um problema em 2017, que só se tornou mais grave desde então. Hoje, apenas a Meta já tem um faturamento anual de USS 26,6 bi e lucro e líquido de US$ 5,7 bi.

Mas naquele momento havia ainda uma certa dúvida do que realmente significava o poderio das gigantes do Vale do Silício, nos Estados Unidos. “Escrevi um texto em 2018, chamado ‘Ressaca da internet’, que tentava expressar que ‘a internet deu ruim’”, descreve o doutor em Comunicação Leo Foletto, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Foletto acredita que a demora em perceber a ascensão das big techs ocorreu devido às enormes expectativas de libertação que a internet trazia. Havia esperança que a hiperconectividade traria mais liberdade de falar e de criar tecnologias, mas o que assistimos foi a construção de bolhas de informação que confirmam pontos de vista, a internet se transformando em uma TV a cabo e o fim da neutralidade da rede.

“Achávamos que existia um enorme potencial insurgente no âmago da tecnologia digital e da internet, mas nos esquecemos de onde ela vem também: dos EUA e de uma Califórnia, berço da chamada hoje ‘ideologia californiana’, definida por Richard Barbook e Andy Cameron como ‘uma improvável mescla das atitudes boêmias e antiautoritárias da contracultura da costa oeste dos EUA com o utopismo tecnológico e o liberalismo econômico’”, detalha Foletto, editor na revista BaixaCultura.

O fenômeno começou a ser visto sob a ótica colonial só recentemente, após o escândalo da Cambridge Analytica, a pequena empresa britânica que usou dados de 87 milhões de usuários do Facebook para influenciar sua opinião política e ajudar a eleger Donald Trump, em 2016.

Um dos primeiros a chamar a atenção sobre como deveríamos compreender essa nova fase do capitalismo, o sociólogo britânico Nick Couldry diz que vivemos um colonialismo de dados que reproduz a lógica de exploração e dominação norte-sul.

O antigo colonialismo se apropriava da terra, de minerais e produtos agrícolas, de escravos. “O novo colonialismo de dados se apropria de nós, seres humanos, do fluxo da nossa vida cotidiana”, disse o coautor do livro The Costs of Connection”, em entrevista ao Instituto Humanitas da Unisinos.

Essa apropriação se dá através da extração massiva de dados pessoais pelas grandes plataformas digitais, que também monitoram nosso comportamento online e usam essas informações conforme seus próprios interesses, invariavelmente sem transparência e visando ao lucro.

O sociólogo Sérgio Amadeu da Silveira, que se debruça sobre este tema há mais de duas décadas, detalha que o processo segue o mesmo fluxo norte-sul do colonialismo histórico: “As grandes empresas hoje são empresas de tratamento de dados sediadas nos EUA e na China e mais poderosas que governos.

Todos os fluxos da nossa vida e do conhecimento presente na internet são transformados em dados com objetivo de modelar comportamentos e a nossa opinião, que ficamos à mercê da desinformação e consumidores de seus produtos”, o autor de Colonialismo de dados (Autonomia Literária, 200 págs) disse ao Extra Classe.

Os vieses colocados nesses algoritmos também partem de um padrão do norte global: branco e masculino, o que potencializa a exploração de minorias, a proliferação de ódio e a violação de direitos humanos.

Couldry e Amadeu ponderam haver diferenças entre colonialismo de dados e seu antecessor histórico, principalmente no aspecto da violência imposta sobre as nações dominadas. Na definição sucinta de Couldry, o novo colonialismo é uma continuidade desse processo: uma nova ordem emergente social e econômica que transforma aspectos da vida humana em dados para o bem de poucos.

Mas talvez o aspecto mais grave do novo colonialismo seja o da alienação, uma característica que também pertencia ao seu antecessor histórico. Estamos imersos nas redes sociais, dependentes das grandes plataformas sem entendermos os termos desse contrato.

“Não sabemos que uso eles fazem da nossa experiência. Uma aluna traduziu os termos de uso do TikTok durante semanas, 600 páginas em mandarim. Quando ela terminou, o termo havia sido modificado”, relata a psicóloga Vanessa Maurente, professora dos PPGs em Psicologia Social e Institucional e do de Informática na Educação, ambos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs).

Couldry compara os termos de uso de serviço do Google Chrome, um dos principais navegadores de internet do mundo, com o Requerimiento, documento de 1513 escrito pela corte espanhola para justificar legalmente a apropriação de recursos e terras na América Latina.

Ao instalar o navegador, está escrito: “Você dá ao Google o direito perpétuo, irrevogável, mundial, livre de royalties e não exclusivo de reproduzir, adaptar, modificar, traduzir, publicar, apresentar publicamente e distribuir esse conteúdo apresentado, publicado ou exibido, ou através dos Serviços”.

Na carta do rei da Espanha, pouco mais extensa, direta e violenta, lia-se: “Se assim não fizerem, ou se maliciosamente adiarem a decisão – da nossa apropriação do ouro, basicamente –, certifico que, com a ajuda de Deus, entraremos poderosamente no seu território, faremos guerra contra vocês de todos os modos e maneiras possíveis, e os sujeitaremos ao jugo e à obediência da Igreja e de Suas Majestades”.

Impacto no conhecimento, comunicação e cognição dados

Essa usurpação de dados tem uma série de repercussões sobre a nossa vida cotidiana. Sérgio Amadeu acredita que uma das principais seja o fato que eles são usados massivamente por governos, empresas, planos de saúde, convênios e bancos sem o nosso conhecimento ou consentimento informado.

“Não sabemos o que esses dados dizem sobre nós, e isso diminui nossa capacidade de negociação, nos tornamos reféns da avaliação feita por um algoritmo”, descreve. O racismo algorítmico, constatado por diversas pesquisas, é um desses efeitos. “As tecnologias não são neutras”, reforça o pesquisador.

Na comunicação, os impactos são ainda mais visíveis e afetam a própria produção de conhecimento – Couldry diz haver, pela primeira vez na história, uma fusão entre produção de conhecimento e de lucro. As plataformas das redes sociais hoje estruturam a esfera pública, papel que antes cabia ao jornalismo.

“Por pior que seja, e sempre há muitas críticas ao jornalismo dito hegemônico, ele pelo menos se baseava em critérios de noticiabilidade visíveis, muitas vezes pautado pelo interesse público. Agora não mais. Não sabemos os critérios utilizados para as redes sociais mostrarem o que nos mostram”, observa Foletto.

Na verdade, sabemos: quanto mais despertar interação, mais a informação circula. Mas essa lógica não é pautada por qualidade ou justiça social. Pelo contrário. “Nessa lógica, discursos de ódio, violências múltiplas e conteúdos sensacionalistas ganham de lavada, arruinando nossa democracia, como vimos acontecer no Brasil em tempos de Bolsonaro, mas também em outros países”, diz o pesquisador da FGV.

O jornalismo perde a disputa pela atenção do leitor ao circular em redes conflagradas e, com frequência, embarca na busca por curtidas. Professores e profissionais liberais acabam também imersos nisso, e a expectativa de ser um “hit” impacta a própria produção de conhecimento.

“É mais uma prática de uma sociedade estruturada na performance e no ‘chamar atenção’ com qualquer conteúdo, pois rende clique, interação e, consequentemente, dinheiro”, diz Foletto.

Um dos reflexos práticos disso é como os dados são usados pelas plataformas para moldar como construímos e consumimos conhecimento. Para a psicóloga Vanessa Maurente, esse cenário, que precisa ser debatido nas escolas, está alterando nossa cognição.

Ela se preocupa especialmente com as crianças e adolescentes, que estão crescendo imersos neste cenário e já dão preferência a vídeos curtos com informações rápidas, digeridas, já construídas: todas as plataformas hoje oferecem vídeos curtos como YouTube Shorts, o Reels do Instagram, o Tik Tok, entre outros.

“Precisamos ensinar a nossa atenção e a nossa memória a refletir, a buscar soluções, a problematizar, a ter trabalho. O pensamento precisa ser provocado. Quando precisarmos exigir da atenção ou memória dos nossos alunos em sala de aula, haverá um custo cognitivo muito maior”, explica a pesquisadora da UFRGS.

As saídas para o caos

É consenso entre especialistas ouvidos pelo Extra Classe que as grandes plataformas devem ser regulamentadas pelo Estado, discussão que entrou na pauta do Parlamento com projeto de lei 2.630.

Conhecido como PL das Fake News, o texto quer estabelecer regras de transparência para provedores de redes sociais, ferramentas de busca e aplicativos de mensagens, como o WhatsApp – o Brasil já dispõe de duas regulações avançadas, como o Marco Civil da Internet, de 2014, e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), de 2018, a qual abriu caminho para tornar a proteção dos dados pessoais um direito fundamental.

Mas ainda é necessário evoluir na responsabilização das plataformas pelo caos desinformativo. “Precisamos de uma lei que reduza o poder das grandes plataformas e as coloque sob o controle das democracias”, argumenta Sérgio Amadeu. Leo Foletto considera importante que esse controle seja feito a partir de um órgão independente das empresas.

“Depois do que vivemos, não podemos esperar que as big techs se autorregulem ou que tenham compromissos com a democracia ou a justiça social.” Amadeu também acredita ser urgente um apoio para desenvolver indústrias de base tecnológica e soluções para o Brasil ter soberania digital.

“Se o Estado não fizer nada, não for ousado em investir neste setor, teremos poucas chances de fazer frente a este cenário.”

Fonte: Extraclasse


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